23/12/2007

Rivalidades

"mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado."
(Drummond)

João Cabral de Melo Neto possui uma literatura muito singular. E entre várias figuras que simbolizam sua obra com certeza está o Sol. Pelo evidente papel do astro no clima seco do nordeste, e também como metáfora de uma poesia árida como é a de Cabral.

E Cabral era chato, pra se ter uma idéia ele dizia que Vinicius de Moraes era um grande talento disperdiçado com rimas fáceis de bossa nova. E também dizia que nossos ilustres modernistas tinham uma escrita muito frouxa.

Ele defendia uma poesia seca, dura, difícil, sem alegrias, alegorias, sem ornatos e nem perfumes. Cabral queria uma poesia domada, como um rio (Capebaribe) em suas margens, aparada em suas arestas, econômica, como a prosa de Graciliano Ramos, a quem tanto admirava. Bons exemplos são sua ode às aspirinas e seu catar feijão. E nesse rigor, segundo o próprio, os nossos iconoclastas falhavam muito. Drummond incluído.

E para muitos, Cabral e Drummond foram nossos dois maiores.

E, a exemplo de Vinicius, de quem era amigo apesar das sinceras críticas, Cabral também foi diplomata, tendo prestado serviços na Espanha, país pelo qual se apaixonou, e se apaixonou por suas touradas, a que lançou odes também. Por isso os versos citados no início do post, que foram escritos por Drummond, me parecem uma clara resposta por parte do mineiro às críticas do pernambucano.

Um fato curioso é que a Bayer, ao saber que um famoso poeta brasileiro tinha escrito uma ode à aspirina, cogitou comprar os direitos para usá-lo em propagandas. Mas ao ler o poema desistiu.

Então, abaixo, se segue a falada ode ao remédio para dor de cabeça (Cabral sofria de enxaqueca crônica), e também o catar feijão, que foi dos poemas que me fizeram amar a literatura, seguido de uma troca entre Cabral e Vinicius. E também a homenagem de Cabral a Graciliano.

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Num monumento à aspirina
(Cabral)

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

*

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

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Catar Feijão
(Cabral)

Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nene,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

*

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá â frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.

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Retrato, à sua maneira
(Vinicius)

Magro entre pedras
Calcárias possível
Pergaminho para
A anotação gráfica

O grafito Grave
Narra poema o
Fêmur fraterno
Radiografável a

Olho nu árido
Como o deserto
E além Tu
Irmão totem aedo

Exato e provável
No friso do tempo
Adiante Ave
Camarada diamante!

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Resposta a Vinicius de Moraes
(Cabral)

Não sou um diamante nato
nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço
será um diamante opaco
de quem por incapaz do vago
quer de toda forma evitá-lo,
senão com o melhor, o claro,
do diamante, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.

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Graciliano Ramos
(Cabral)

Falo somente com o que falo:
com as mesmas vintes palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto de cicatriz clara.

*

Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.

*

Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua

*

Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,
a contra-pêlo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.

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E já que a moda é citar poemas enormes. Cito um poema de Manuel Bandeira, conterrâneo de Cabral. Um dos melhores poemas que se pode ler, e que me fez entender muita coisa.


Os Sapos

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."

Urra o sapo-boi: -
"Meu pai foi rei!" - "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é como
Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo".

Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é

Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...

22/12/2007

Parmênides em Pessoa

"O que é é."
(Parmênides de Eléia)

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O Guardados de Rebanhos (Alberto Caeiro)

O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

ps: Parmênides foi o grande rival de Heráclito á época do florescimento do filosofia pré-socrática. O que mais comprova a unidade das tensões opostas teorizada pelo efésio misantropo.

Heráclito em Pessoa

"O Sol não apenas é novo a cada dia, mas sempre novo, continuamente."

"O que varia está de acordo consigo mesmo."

"Tudo flui como um rio."
(Heráclito de Éfeso)

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O Guardador de Rebanhos (Alberto Caeiro):

II
"O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar... "

XV
"As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
São do contrário do que eu sou...

Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não concordam...
Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são.
(Senão não estaria doente)
Devo sentir o contrário do que sinto
Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira...
Devo ser todo doente - ideias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.

Por isso essas canções que me renegam
Não são capazes de me renegar
E são paisagem da minha alma de noite,
A mesma ao contrário..."

XX
"O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha
[aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontraram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele."

XXIX
"Nem sempre sou igual ao que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.

Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem em mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés -
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma..."

PS: a despeito de uma forte intimidade entre aforismos heraclíticos e versos caerianos supracitados, fundamental é ler toda a curta obra desses dois gênios para se compreender melhor tudo o que possuem em comum, como, por exemplo, a refutação dos poetas místicos.

Muuu

"Se a felicidade está nos prazeres do corpo, então felizes os bois quando encontram ervilha para comer."

(Heráclito de Éfeso)




"O BOi

Vai o animal no campo; ele é o campo como o capim, que é o campo se dando para que haja sempre boi e campo; que campo e boi é o boi andar no campo e comer do sempre novo chão. Vai o boi, árvore que muge, retalho da paisagem em caminho. Deita-se o boi, e rumina, e olha a erva a crescer em redor de seu corpo, para o seu corpo, que cresce para a erva. Levanta-se o boi, é o campo que se ergue em suas patas para andar sobre o seu dorso. E cada fato é já a fabricação de flores que se erguerão do pó dos ossos que a chuva lavará, quando for tempo."

(F.Gullar)