26/02/2008

Incomensurabilidades

"Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. "
(Álvaro Campos)



Irracional: tal palavra, em sua origem grega, significa o que não tem medida. E o intelecto humano desde muito tempo se ocupa justamente em medir. As ciências exatas, meninas dos olhos das ciências em geral, se denominam exatas justamente porque crêem mais exatas as suas medidas. E tudo isso sobre as bençãos da linguagem matemática.

Porém, na Grécia pré-Socrática houve um episódio curioso, onde a própria matemática, mas precisamente a geometria (geo = terra; metria = medida) euclidiana tropeçou numa das pedras da imensurabilidade. Os pensadores pitagóricos, ao estudar as relações entre os triângulos e os quadrados, (e também os pentágonos, mas nada que lembre os EUA) perceberam que não era possível uma medida exata da raiz de dois, na verdade, àquela época eles chegaram a concluir que tal medida não era apenas inexata, mas inexistente. Pois não conseguiam achar um número que fosse mensurável e que multiplicado por ele mesmo fosse igual a dois. E de fato a raiz de dois é um número infinito, não no sentido de ser o infinito em si, mas no sentido de que nunca chega ao fim, há sempre mais um algarismo. O número que representa a raiz de dois não procede da razão entre dois númoero inteiros, daí ser dito, como outros tanto números, irracional.

E esse é um entrave à racionalidade que se dá no mundo abstrato das matemáticas. Imagine no mundo concreto. Qual a razão entre um tomate e uma laranja? Ou até a razão entre dois tomates? Difícil de dizer. E diante disso vejamos o que diz Clarice Lispector:

"...Não me posso resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maçãs. Eu sou uma cadeira e duas maçãs. E não me somo..."

Não há razão entre cadeiras e maçãs, como não há razão entre tomates e laranjas. E talvez nem a haja entre dois tomates, porque se um 2 é sempre idêntico a outro 2, até hoje não vi dois objetos que não apresentassem diferenças, mesmo que sejam dois tomates, o máximo que se consegue nesse mundo real são semelhanças, e essa distância entre o que se assemelha e o que se identifica acarreta sérios problemas à racionalidade, à medida, ao padrão.


Porém, se não há razão entre cadeiras, tomates, laranjas, bananas, cadeiras, pães, bifes, cervejas, softwares, como fica a vida em comunidade do marceneiro, do tomateiro, do laranjeiro, do bananeiro, do padeiro, do açougueiro, do cervejeiro, do Bill Gates, do Steve Jobs, etc?

É nesse instante que surge uma abstração com a finalidade de servir como unidade de medida, fator racional entre esses objetos díspares. E que nova medida é essa? Quem é essa abstração racional?

Pois bem: A Moeda.

Nas antigas Metonímias: o níquel, o cobre, a prata, o ouro. Nas modernas nomenclaturas: o papel-moeda, os cheques, os cartões, os meios de pagamento.

Porém essa abstração monetária também possui constituição concreta, e o que surge para representar as mercadorias se tranforma em mercadoria itself e aí só aumenta a complexidade.

Então, se faz bem fácil perceber que a moeda não é uma medida de valor absoluta, que todos os preços são relativos. Até andou se procurando há alguns séculos a tal da medida invariável de valor, que fosse a medida-base de todos os outros valores, mais ou menos como os alquimistas procuravam o elixir da eterna juventude. Mas, ao que parece, já abandoram os economistas essa empreitada quixotesca.

O que se sabe é que de alguma forma os preços se formam. Uma coisa vale não só pelo valor (leia-se utilidade) que se dá a ela, mais pelo valor que se dá a todas as outras coisas que existem e possuem utilidade no mundo junto com ela, bem como pelo trabalho que se faz pra fabricar as coisas e pelo valor que têm os insumos, os fatores que entram de um lado da máquina pra que do outro lado saia o produto acabado, ou melhor, o produto final.

Em sumo, o valor de cada coisa interfere no valor de cada coisa e o valor de tudo sofre a interferência do valor de tudo mais. Acho que já se pode perceber aqui os limites da racionalidade nas ciências econômicas.

Mas as coisas não param por aí. São notórias as duas curvas (ou rotas flexas como prefere a poesia de Márcio-André) dos estudos econômicos: a tal da demanda e a tal da oferta, e ambas deixam transparecer o problema da irracionalidade.

Na curva de demanda, que seria o lado do consumidor, o problema está na aferição da chamada utilidade, pois o preço que alguém está disposto a pagar por alguma coisa é uma função da renda que essa pessoa carrega e da utilidade que ela enxerga no referido bem. A racionalidade das rendas é algo bem mais conformável, é bem fácil saber quanto você tem no bolso, na carteira, na conta-corrente, ou na conta investimento, se a memória falhar basta um extrato por um tarifa assaltante. Desprezados aqui os efeitos da inflação e dos roubos propriamente ditos, aqueles à moda antiga.

Porém, a medida das utilidades é algo que foge muito ao conceito de racionalidade. Afinal, o que são os valores que damos às coisas? Por que são esses valores? Parece bem claro que a valoração que atribuímos é muito mais uma questão de delírios, devaneios, sonhos, imaginações, expectativas grossamente irracionais. Não me parece que o valor que damos aos bens seja o caso de calcularmos, através da matemática integral, diferencial e infinitesimal, a utilidade marginal dos bens. Como quer crer a economia mainstream.

Logicamente, há o conceito de transitividade, que siginifica: se "A" é preferível a "B"; e "B" é preferível a "C"; então, "A" é preferível a"C". E querem crer que é através dessa análise lógica que conferimos valor e utilidade às coisas. Mas bem sabemos que em nossa mente, se "A" é maior que "B", e "B" é maior que "C", "C" pode ser maior que "A" e "B" juntos, "C" pode ser maior que o próprio "C", podemos preferir "B" a "B", para depois preferir "A" e "C". E a racionalidade encontra mais problemas.

No outro lado da moeda, isto é, na curva de oferta, o problema da racionalidade é justamente um problema de lógica, mas propriamente um tipo de falácia, uma tautologia, um argumento circular, que dá voltas sobre si mesmo, como uma cobra que morde a própria cauda. Vejamos:

Os preços de oferta são calculados através do custo marginal dos bens, isto significa dizer que os preços do bem se equivalem ao custo de se produzir mais um bem. E esse custo, por sua vez, é uma função da produtividade dos fatores, ou seja, quanto se terá que investir em capital pra produzir aquele bem. Porém, o capital não é homogêneo, já se fala em capital humano, social, industrial, ambiental, tecnológico, a cada hora surge um capital, e isso, por si só já demonstra a heterogeneidade do capital, porém, até mesmo dentro de suas classe específicas, os capitais se diferenciam, afinal, você, se chefe, e seu colega de trabalho são capitais humanos, e mesmo sem conhecê-los tão bem, eu aposto uma quantia razoável que vocês são bem diferentes.

Então, para se racionalizar esses capitais distintos, usasse uma unidade de medida comum: a moeda, novamente. A produtividade do capital, numa cadeira de produção racional, é igual a remuneração desse capital. Isto é, a sua produtividade é o seu salário.

O problema é que para calcular a produtividade dos capitais é preciso que se tenha um fator monetário comum, que é a remuneração dos capitais, porém, para calcular a remuneração dos capitais usa-se como base as suas produtividades, esse é o círculo vicioso dos argumentos e medições da economia "orto"doxa. Para se calcular uma coisa usa-se outra, mas pra se calcular essa outra usa-se aquela uma. E foi esse insulto à racionalidade por parte dos estudos econômicos dominantes que muitos marxistas criticaram.

E os marxistas também deram suas contribuições nas teorias das comunicações e da cultura, sobretudo a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, e os Cultural Studies de Londres, que recusaram o método quantificativo usado principalmente pelas Escolas Norte-Americanas. Tais estudiosos pretendiam estudar os problemas midiáticos com base apenas em tabelas de questionários e peripécias estatísticas. Ao que tais marxistas respoderam: "os processos culturais não se quantificam, porém, não podem ser deixados de lado numa teoria da comunicação que se queira minimamente responsável. Ao que os mainstream respodiam: "nós queremos um teoria que possa ser medida e testada."

E nessa obessessão pela medida, vamos dando testadas até os dias de hoje. E é bom que se aproveite o insejo para se dizer que nem Marx nem os marxistas foram profetas irrepreensíveis, mas foram sujeitos de análises muito valiosas, e se os planos de ação futura dos marxistas falharam em muitos pontos, não significa que suas críticas não encontrem pertinência.

É costume se ignorar toda a teoria crítica marxista por sujeitos como Fidel Castro, Stalin, Pol Pot terem cometido atrocidades em nome de um suposto socialismo. Isso é tão ridículo como negar toda a teoria ortodoxa pelas sandices da família Bush, de seus asseclas e seus et ceteras.

Fechados esses parênstesis, tocarei apenas em mais um ponto das tensões entre racionalidades e irracionalidades, algo que julgo muito curioso.

O sentido mais aguçado na raça humana é a visão, e é justamente ela que capta a luz. E a palavra luz e a raiz etimológica de duas palavras que são praticamente antônimas, a saber: elucidação e alucinação.

A luz é metáfora corrente para conhecimento, ciência, sabedoria, donde a palavra elucidação, porém se essa luz não tiver uma racionalidade, se essa luz ultrapassar as medidas, torna-se loucura, alucinação, talvez por isso se diga que todo gênio é louco, pois ele deve se situar nesse limite entre luz em boa medida e luz além das medidas. Eles tangem a linha do que compreendem os elucidados e do que só compreenderão os alucinados.

Não cabe aqui discutir quem tem razão de se auto-denominar elucidado, e alcunhar os demais de alucinados.

O fato é que talvez por essas questão entre o que é mensurável e o que é sem medida que tenha sido dito e esteja escrito:

"Paulo, porém, falou: Não estou louco. Pelo contrário, digo palavras de verdade e de bom senso."
(Atos dos Apóstolos cap: 26; ver: 24 )

E ainda Paulo, em sua primeira epístola aos coríntios:

"Porventura não tornou Deus louca a sabedoria do mundo?" (cap: 1; ver: 20)

"Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens" (cap; 1, ver: 25)

Portanto, desconfio dos filósofos análiticos que querem achar uma medida para refutar Deus.

E também desconfio do filósofo alemão Nietzsche, quando esse, através de uma peripécia lógica e análica, justo ele que se quis tão longe dos racionadores, me diz que Deus é morto porque sua onipotência se contradiz quando não pode criar uma pedra tão pesada que não possa carregar.

E por isso desconfio dessa sanha humana pela medida e pelo padrão. Como desconfiaria de uma sanha humana pelo desmedido. O fato é que estamos entre essas coisas, entre as coisas, e seus contrários, que também são coisas, ainda que outras. Estamos entre o desconhecido e o conhecido, e não conhecemos nem desconhecemos, plenamente.

Por isso acho que uma posição de ceticismo deve ser fruto de uma posição de humildade. Quando Sócrates diz que sabe que não sabe, a ênfase deve ser dada no "não sabe". E assim faz o cético humilde. O cético arrogante coloca todo o seu foco no primeiro "sabe". E assim, no seu niilismo dogmático, acredita que já sabe, antes de todo mundo, que ninguém soube nem sabe nem jamais saberá de nada.

Me parece muito pertinente fechar o texto com esse paradoxo de Sócrates, justamente por serem os paradoxos afrontas à lógica e a racionalidade, mas não me poupo de reafirmar que diante do irracional, do ilimitado, do inexplicável, do inexprimível, do inteligível, me parece muito mais elegante uma postura de humildade. Embora a arrogância e a vaidade nos queiram fazer sempre esquecer a segunda metade da frase, e dizer apenas: "eu sei" e olvidar o "que não sei de nada".

Esse assunto ainda poderia se alongar, poderia se discutir se o fato de não se saber, pode de fato esconder uma covardia, uma acomodação, algo que chamo de "ceticismo preguiçoso", por exemplo, já que não se pode saber de nada, eu não quero saber de nada mesmo.

O fato é que sabemos de algo; mas, na medida infinita das coisas que se há pra saber, esse algo que sabemos e sempre como nada. É como caminhar um caminho sem fim. Não há dúvidas que se caminha, como não há dúvidas que não se chega um centímetro mais perto do final.

E, por isso, sempre que se olhar pra frente, se mirar o horizonte, se vislumbrar o infinito, se perceberá que não se sabe. Mas sempre que se virar o pescoço e olhar pra trás, o tanto que já se caminhou, verá que alguma coisa se sabe. E se se olhar simultaneamente pra frente e pra trás, verá que se sabe e que não se sabe. E essa beleza é que é muito bela, e que me parece fazer todo sentido.

Para os preguiçosos, ou apressados, que apenas querem chegar ao fim, esticar a fita métrica e dizer: "é tanto". Realmente uma jornada dessas não é muito conveniente. Mas que valorizam o caminho que se caminha a cada passo, e não a chegada tão-somente, uma viagem dessas é a maior felicidade que se pode almejar.

18/02/2008

Perfeito

"Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro."

(Gilles Deleuze)