11/10/2007

se fosse bom...

"Longe do estéril turbilhão da rua"
(Olavo Bilac)

eis o conselho parnasiano que a poética suja de Ferreira Gullar ousou não seguir.

Pela rua

Sem qualquer esperança
detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo,
enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.

Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
e o coração dispara.

Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.

A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.

A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
solto ao fumo da gasolina queimada.

06/10/2007

Mania

nacionalíssimo, brasileiríssimo...
Carlos Drummond Verde-Amarelo.

"No corpo feminino, esse retiro
- a doce bunda - é ainda o que prefiro.
A ela, meu mais íntimo suspiro,
pois tanto mais a apalpo quanto a miro.

Que tanto mais a quero, se me firo
em unhas protestantes, e respiro
a brisa dos planetas, no seu giro
lento, violento... Então, se ponho e tiro

a mão em concha - a mão, sábio papiro,
iluminando o gozo, qual lampiro,
ou se, dessedentado, já me estiro,

me penso, me restauro, me confiro,
o sentimento da morte eis que o adquiro:
de rola, a bunda torna-se vampiro."



"A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora - murmura a bunda - esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.

Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda
redunda."

04/10/2007

Pés

Pablo Neruda faz muitas alusões aos pés, prova disso são seus versos:

"e num duplo rio chegava a seus pés,
grandes e claros"

"Acontece que me canso de meus pés e de minhas unhas,"

"Passeio calmamente, com olhos, com sapatos,"

bem como no poema

Os teus pés

Quando não te posso contemplar
Contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,
Teus pequenos pés duros,

Eu sei que te sustentam
E que teu doce peso
Sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
A duplicada púrpura
Dos teus mamilos,
A caixa dos teus olhos
Que há pouco levantaram vôo,
A larga boca de fruta,
Tua rubra cabeleira,
Pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
É só porque andaram
Sobre a terra e sobre
O vento e sobre a água,
Até me encontrarem.

e fora as citações diretas aos pés nos versos dos poemas, há inúmeras citações indiretas, por verbos como caminhar, andar, ir, vir, chegar, viajar, encontrar...

A poesia de Neruda possui a noção de movimento, e do movimento singelo dos pés descalços.

E aqui, veremos Manuel Bandeira se aproximando, a seu modo, de Pablito!

Ad Instar Delphini

Teus pés são voluptosos: é por isso
Que andas com tanta graça, ó Cassiopéia!
De onde te vem tal chama e tal feitiço
Que dás idéia ao corpo, e corpo a idéia?

Camões, valei-me! Adamastor, Magriço,
Dai-me força, e tu, Vênus Citeréia
Essa docura, esse imortal derriço...
Quero também compor minha epopéia!

Não cantarei Helena e a antiga Tróia,
Nem as Missões e a nacional Lindóia
Nem Deus, nem Diacho! Quero, oh por quem és,

Flor ou mulher, chave do meu destino,
Quero cantar, como cantou Delfino,
As duas curvas de dois brancos pés!



glossário

para os gregos, a cidade de Delphos era omphalos, ie, o umbigo do mundo; o centro absoluto do relativo círculo. E foi lá que Apolo matou a serpente e fundou seu oráculo.

Também houve um poeta brasileiro do século XIX, que se chamava Luís Delfino.

Talvez essas duas colocações lancem luzes sobre o poema, talvez; não sei!

Filmes

que se deve re-assistir (em desordem de aparição e preferência)


1.Fight Club
2.21 Grams
3.Matrix
4.Land Of The Blind
5.Closer
6.AmoresPerros
7.Adaptação
8.Quero Ser John Malkovich
9.Huricane
10.A Última Ceia
11.Adivinhe Quem Vem Pra Jantar
12.A Vida é Bela
13.Declínio do Império Americano
14.As Invasões Bárbaras
15.Cidade de Deus
16.Carandiru
17.Amarelo Manga
18.Gandhi
19.O Gosto dos Outros
20.Os Sonhadores
21.Traffic
22.O Mercador de Veneza
23.O Auto da Compadecida
24.Dogville
25.Manderlay
26.OldBoy
27.Paradise Now
28.New Orleans
29.Meu Tempo é Hoje
30.Cinema, Aspirinas e Urubus
31.Cachê
32.O Cheiro do Ralo
33.Proibido Proibir
34.Bom Pastor
35.Winters Solstice
36.O Labirinto do Fauno
37.Bonecas Russas
38.Ânsia de Amar
39.Little Children
40.O Ano em que Meus Pais Sairam de Férias
41.Lavoura Arcaica
42.Um Estranho no Ninho (a flew over the cuckoo´s nest)
43.Laranja Mecânica (the clockwork orange)
44.Casa de Areia
45.Um Copo de Cólera
46.Princesas
47.Finding Forrest
48.Náufrago
49.Apocalipto
50.Pollock
51.Modigliani
52.Zelig
53.Amnésia
54.A Lenda de Beowulf
55.O Amor nos Tempos de Cólera
56.Sombras de Goya
57.A Vida dos Outros
58.A Bússola de Ouro

03/10/2007

Semelhanças

do poema "Lua" de Manuel Bandeira, citado abaixo, e do prólogo do livro Espumas Flutantes (bem sugestivo), de Castro Alves, vejamos:

"Era por uma dessas tardes em que o azul do céu oriental - é pálido e saudoso, em que o rumor do vento nas vergas - é monótono e cadente, e o quebro da vaga na amurada do navio - é queixoso e tétrico."

(...)

"Foi então que, em face dessas duas tristezas - a noite que descia dos céus, - a solidão que subia do oceano -..."

(...)


'Uma esteira de espumas... - flores perdidas na vasta indiferença do oceano. - Um punhado de versos... - espumas flutuantes no dorso fero da vida!..."

E o que são na verdade estes meus cantos?

Como espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos da musa - este sopro do alto; do coração - este pélago da alma."

02/10/2007

Contradição?

Satélite

Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A Lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite.

Desmetaforizada,
Desmistificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro do loucos e dos enamorados.
Mas tão somente
Satélite.

Ha Lua deste fim de tarde,
Demissionária de atribuissões românticas,
Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
- Satélite.
(Manuel Bandeira)

Lua

A proa reta abre no oceano
Um tumulto de espumas pampas.
Delas nascer parece a esteira
Do luar sobre as águas mansas.

O mar jaz como um céu tombado.
Ora é o céu que é um mar, onde a lua,
A só, silente louca emerge
Das ondas-nuvens toda nua
(Manuel Bandeira)



No primeiro poema Bandeira parece assumir um discurso positivista em sua poesia, o que não deixa de ser curioso, pois o discurso positivista é anti-mitológico, por se recusar a ver a Lua como algo mais que um satétlite terrestre, como uma deusa por exemplo, e assim é também anti-poético. E nesse poema Bandeira assume uma linguagem anti-poética. Apenas para recuperá-la, no mesmo livro, cinco páginas depois. Referindo-se ao mesmo objeto, agora não mais recebendo um tratamento puramente científico, mas re-vestido de seu carácter poético. Onde, não ingenuamente, é utilizada novamente a noção de espelho ao ser o mar um reflexo do céu, o céu um reflexo do mar. O que é magistralmente posto no neologismo "ondas-nuvens".

Agora, pode-se perguntar: por que a negação de um discurso para reafirmá-lo logo depois? Alberto Caeiro bem atentou para o carácter contraditório dos poetas que ora olham para um lado, ora olham para o outro. E que são sempre iguais, sendo a cada instante diferentes. Mas o caso aqui nem parece chegar a tanto.

Sempre aprendi na escola e nos manuais de literatura que esse poema é um ícone do modernismo (não por acaso um dos mais citados e conhecidos do poeta) porque ele retrata fielmente uma visão de mundo deprimida, pessimista, um discurso poético invadido pela linguagem não-poética, numa espécie de arrebatamento da poesia pela linguagem positiva, analítica.

Hoje, me admito refutar esse argumento que me foi encucado depois de tanto tempo. Vejamos porquê: Repare, na primeira estrofe, no uso de palavras como: plúmbeo e cosmograficamente que são palavras bem à guisa do rigor científico. Repare, então na segunda estrofe, a tripla e seguida repetição do prefixo: "des" que significa justamente a negação. Agora o mais importante, repare nas duas últimas estrofes na inclusão das palavras: demissionária, show, mais-valia.

Pra mim, nesse poema, trata-se de uma ironia. Usando largamente conceitos marxistas, Bandeira conclui que num mundo onde demissão, que causa o exército industrial de reserva citado por Marx em sua obra, é uma palavra corrente, inclusive poética, num mundo onde a mais-valia(outro termo de Marx), que explora o trabalhador que ainda não foi demitido, também é prática corrente e palavra agradável. E que num mundo onde essas demissões e essa mais-valia agem em prol di maior lucro dos capitalistas que bem ao modo do amecican way of life acham que a vida é um show !

Nesse mundo sim faz todo o sentido a destituição da linguagem e do pensamento poéticos e mitológicos. Mas em outros mundo possíveis, com os quais ainda sonha o poeta (e bem nos disse a Nobel de física "a realidade é apenas uma das possilidades"), nesses outros mundos, nessas outras ordens de fantasia, ainda cabe a linguagem que o poeta emprega e confirma e no segundo poema.