17/03/2008

Indicações

3 escritores contemporâneos e excelentes:

roteiro: Guillermo Arriaga

romance: Raduan Nassar

poema: Márcio-André

10/03/2008

Bandeira

Pardalzinho


O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa
Água, comida e carinhos.

Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão.
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos


Meu amigo Osmar descobriu pra mim o poema acima. E eu penso que o crítico revela o que o artista oculta, analisa o que o artista sintetiza. E nesse poema de temática infantil temos as mais complexas e sutis maturidades.

Reparemos nas rimas:

asa - casa

vão - prisão

nasceu - morreu

voou - enterrou

passarinho - carinho

Esses pares de palavras que são semelhantes pelo som, são contradizentes pelo conceito.

Pois a casa abriga, a asa livra.

E é justamente a ambiguidade a maior virtude do poema.

Podemos dividir as palavras rimadas em dois paralelos semânticos:

o primeiro seria: asa, vão, nasceu, voou, passarinho

e o segundo: casa, prisão, morreu, enterrou, carinho.

E o que realmente surpreende é o conceito que se faz de carinho. A primeira intenção, sobretudo dos que vêem a poesia sobre um prisma essencialmente romântico, seria atrelar a palavra carinho à palavra passarinho. Assemelhá-las não apenas foneticamente, mas também conceitualmente.

Eis que esse fabuloso poeta moderno, mantendo a proximidade sonora de carinho e passarinho, afasta seus conceitos de forma diametral, sutil e genial. Esse é sem dúvida um poema que se deve ler com os olhos muito bem abertos.

Se o passarinho na sua asa, nasce e voa em vão. No carinho de Sacha, ele encontra uma casa, que é de fato uma prisão, e assim, morre, e é enterrado.

Um gesto de boa intenção (o carinho) traz, na sua ponta, gesto de má conduta (cárcere e morte). Uma ambiguidade fatal. E de fato as ações humanas são eivadas de ambiguidades. Os nossos costumes, os nossos hábitos, a nossa linguagem, a nossa hipocrisia assiduamente fazem com que nossas atitudes possuam dois gumes, como uma faca. Ou até mais.

Porém, há outro paralelismo no poema que instaura uma nova ambiguidade.

O poema é todo construído em redondilhas maiores, versos com 7 sílabas poéticas, umas das mais correntes formas medievais; e, por isso, chamada, pelos renascentistas, de medida velha. Isso atesta o fato de que os modernos frequentemente recorrem ao antigo, buscam a nova idade (novidade) na antiga idade (antigüidade).

Mas o mais interessante é a ocorrência de enjambement, que se faz presente quando um verso trepa, monta, invade o outro. E isso acontece do primeiro para o segundo verso da primeira estrofe, quando a palavra Livre, que sintaticamente pertence ao primeiro verso, entra no segundo, para que seja mantida rígida a forma. E o poeta de maneira ambígua, se mantém preso à forma antiga para que possa alcançar maior liberdade e inovação poéticas

E esse fenômeno volta a ocorrer na segunda estrofe, mais precisamente do quarto para o quinto verso, com o advérbio de lugar No jardim.

E essa recorrência, não é acaso, acidente, ou coincidência, mas é fruto do cálculo e forte consciência poética.

Pois esse enjambement inaugura um paralelismo e cria, virtual e magistralmente, um novo verso dentro do poema, qual seja: "Livre/No jardim"

E aqui está a nova ambiguidade a que o poema se refere, pois o ar, o céu, representam metaforicamente a liberdade, daí os devaneios passarinheiros dos mais diversos poetas, e aqui podemos citar Mário Quintana:

"Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês"

ou, os ainda mais célebres dos seus versos:

"eles passarão
eu passarinho"

A terra, ao contrário, representa a prisão, a falta de liberdade pra voar que a força G de Newton nos impõe.

Mas é justamente ao perder a liberdade de vôo na casa/prisão de Sacha, que o passarinho prefere morrer para que enterrado recobre a sua liberdade de voar. A morte, o funeral, esses fatos tão funetos, ambiguamente, recobram a liberdade do voador, esse fato tão fantástico.

E creio que não foi por acaso que Manuel Bandeira visualizou nos jardins as faixas de terra mais próximas do espaço aéreo, posso supor que isso se deve às cores e aos odores esfuziantes que os eles nos oferecem.

E com essa visão do jardim, o poeta moderno reafirma um conceito romântico de forma inovadora, conceito que ele havia rebatido quando opôs ao passarinho o carinho da menina.

E com essas ambiguidades todas, que esse genial poeta encharca de signifacado um poema, à primeira vista, banal. E, além disso tudo, sugere uma reflexão a respeito da domesticação dos animais, que pode ser extendida, sem exageros, a civilização dos seres humanos.

Estaria certo Rousseau? O homem selvagem goza de maior liberdade ao prescindir das etiquetas sociais? Ou a hipocrisia e a dissimulação viriam para preservar, de alguma forma, um primeiro instinto selvagem de liberdade e isolamento no homem civilizado? Hobbes nos diz que o homem selvagem abre mão de certa liberdade, para em contra partida tirar proveito de certas situações da vida em grupo. Seriam as ambiguidades e contradições uma forma, ainda que inconsciente, do civilizado grilhado pelas regras sociais procurar recuperar a sua liberdade solitária?

Nietzsche e Foucault perceberam que as relações humanas são intrincados jogos de poder, que se dão pelos discursos, diálogos e comunicações. E a dissimulação e a hipocrisia, o discurso redundante, vicioso e enviesado, servem justamente para avoidar um completa revelação de si mesmo ao outro. Sua função é manter o oculto, o segredo, o mistério, a dúvida e a desconfiança. Para que as coisas nunca estejam muito bem ditas e que sempre se tenha algo a mais para se dizer, sempre haverá o não-dito.

De tal maneira que analizadores da lingugem já tentaram lipoaspirá-la de todo excesso, de toda a gordura, de todo exagero e confusão, e depois de séculos, concluíram que tal tarefa é impossível.

O fato é que, nas prisões telúricas, há faixas sensíveis que devem nos lembrar ( e a verdade em grego significa justamente "lembrar") a liberdade que tivemos e que teremos. E esses meios de recordação são os jardins e são, também, as obras de arte. E aqui se instaura um profundo carácter ético e moral da arte, que deve nos redizer, de forma lúdica e sensível, o nosso direito a ser livres. Não deve ser apenas um mero entretenimento para matar a tempo, como a indústria cultural capitalista, tão bem criticada pela escola de Frankfurt, nos quer fazer crer.

E outro ponto de reflexão que esse poema pode propor é se a moderna aerodinâmica, se o vôo mecânico dos pássaros de aço movido a combustível, nos trazem mais liberdade, ou se apenas nos trazem mais prisão, quando aumentam, simultaneamente, nossa velocidade e nossa pressa.