23/12/2007

Rivalidades

"mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado."
(Drummond)

João Cabral de Melo Neto possui uma literatura muito singular. E entre várias figuras que simbolizam sua obra com certeza está o Sol. Pelo evidente papel do astro no clima seco do nordeste, e também como metáfora de uma poesia árida como é a de Cabral.

E Cabral era chato, pra se ter uma idéia ele dizia que Vinicius de Moraes era um grande talento disperdiçado com rimas fáceis de bossa nova. E também dizia que nossos ilustres modernistas tinham uma escrita muito frouxa.

Ele defendia uma poesia seca, dura, difícil, sem alegrias, alegorias, sem ornatos e nem perfumes. Cabral queria uma poesia domada, como um rio (Capebaribe) em suas margens, aparada em suas arestas, econômica, como a prosa de Graciliano Ramos, a quem tanto admirava. Bons exemplos são sua ode às aspirinas e seu catar feijão. E nesse rigor, segundo o próprio, os nossos iconoclastas falhavam muito. Drummond incluído.

E para muitos, Cabral e Drummond foram nossos dois maiores.

E, a exemplo de Vinicius, de quem era amigo apesar das sinceras críticas, Cabral também foi diplomata, tendo prestado serviços na Espanha, país pelo qual se apaixonou, e se apaixonou por suas touradas, a que lançou odes também. Por isso os versos citados no início do post, que foram escritos por Drummond, me parecem uma clara resposta por parte do mineiro às críticas do pernambucano.

Um fato curioso é que a Bayer, ao saber que um famoso poeta brasileiro tinha escrito uma ode à aspirina, cogitou comprar os direitos para usá-lo em propagandas. Mas ao ler o poema desistiu.

Então, abaixo, se segue a falada ode ao remédio para dor de cabeça (Cabral sofria de enxaqueca crônica), e também o catar feijão, que foi dos poemas que me fizeram amar a literatura, seguido de uma troca entre Cabral e Vinicius. E também a homenagem de Cabral a Graciliano.

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Num monumento à aspirina
(Cabral)

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

*

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

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Catar Feijão
(Cabral)

Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nene,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

*

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá â frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.

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Retrato, à sua maneira
(Vinicius)

Magro entre pedras
Calcárias possível
Pergaminho para
A anotação gráfica

O grafito Grave
Narra poema o
Fêmur fraterno
Radiografável a

Olho nu árido
Como o deserto
E além Tu
Irmão totem aedo

Exato e provável
No friso do tempo
Adiante Ave
Camarada diamante!

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Resposta a Vinicius de Moraes
(Cabral)

Não sou um diamante nato
nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço
será um diamante opaco
de quem por incapaz do vago
quer de toda forma evitá-lo,
senão com o melhor, o claro,
do diamante, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.

---

Graciliano Ramos
(Cabral)

Falo somente com o que falo:
com as mesmas vintes palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto de cicatriz clara.

*

Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.

*

Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua

*

Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,
a contra-pêlo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.

---

E já que a moda é citar poemas enormes. Cito um poema de Manuel Bandeira, conterrâneo de Cabral. Um dos melhores poemas que se pode ler, e que me fez entender muita coisa.


Os Sapos

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."

Urra o sapo-boi: -
"Meu pai foi rei!" - "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é como
Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo".

Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é

Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...

22/12/2007

Parmênides em Pessoa

"O que é é."
(Parmênides de Eléia)

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O Guardados de Rebanhos (Alberto Caeiro)

O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

ps: Parmênides foi o grande rival de Heráclito á época do florescimento do filosofia pré-socrática. O que mais comprova a unidade das tensões opostas teorizada pelo efésio misantropo.

Heráclito em Pessoa

"O Sol não apenas é novo a cada dia, mas sempre novo, continuamente."

"O que varia está de acordo consigo mesmo."

"Tudo flui como um rio."
(Heráclito de Éfeso)

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O Guardador de Rebanhos (Alberto Caeiro):

II
"O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar... "

XV
"As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
São do contrário do que eu sou...

Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não concordam...
Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são.
(Senão não estaria doente)
Devo sentir o contrário do que sinto
Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira...
Devo ser todo doente - ideias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.

Por isso essas canções que me renegam
Não são capazes de me renegar
E são paisagem da minha alma de noite,
A mesma ao contrário..."

XX
"O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha
[aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontraram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele."

XXIX
"Nem sempre sou igual ao que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.

Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem em mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés -
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma..."

PS: a despeito de uma forte intimidade entre aforismos heraclíticos e versos caerianos supracitados, fundamental é ler toda a curta obra desses dois gênios para se compreender melhor tudo o que possuem em comum, como, por exemplo, a refutação dos poetas místicos.

Muuu

"Se a felicidade está nos prazeres do corpo, então felizes os bois quando encontram ervilha para comer."

(Heráclito de Éfeso)




"O BOi

Vai o animal no campo; ele é o campo como o capim, que é o campo se dando para que haja sempre boi e campo; que campo e boi é o boi andar no campo e comer do sempre novo chão. Vai o boi, árvore que muge, retalho da paisagem em caminho. Deita-se o boi, e rumina, e olha a erva a crescer em redor de seu corpo, para o seu corpo, que cresce para a erva. Levanta-se o boi, é o campo que se ergue em suas patas para andar sobre o seu dorso. E cada fato é já a fabricação de flores que se erguerão do pó dos ossos que a chuva lavará, quando for tempo."

(F.Gullar)

29/11/2007

Lembranças

Há uma passagem na Bíblia que diz que o homem segue errante em seus descaminhos por ter-se esquecido de quem ele é, por ter esquecido do seu nome. Mostrando aqui uma espécie de nominalismo que identifica no nome da coisa sua própria essência, ie, ou homem ao esquecer seu nome esqueceu quem é.

E isso me lembra os gregos. Porque em grego, verdade se diz: alethéia; que se deriva de lethé, que em português significa esquecer. Com a colocação do prefixo a, que em grego é um afixo que indica negação. Então, para os gregos, a verdade é o não-esquecido. Isso vai bem de acordo com a teoria platônica da reminiscência, do conhecimento inato, ie, conhecimento adquirido antes do nascimento, como se cada homem viesse à vida tendo todo o conhecimento prévio. Mas por algum trauma violento que seja viver, o homem se esquece, se separa da verdade.

Então, como foi dito em algum escrito de João, se não me engano, "conheça a verdade, e a verdade te libertará". Pode ser interpretado como: "recorde-se da verdade e recobre a sua liberdade.

28/11/2007

Galo Galo

o galo é, entre os gregos antigos, símbolo de vigilância. Um dos melhores poemas que se pode ler:



O galo
no saguão quieto.

Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.

De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.

Mede os passos. Pára.
Inclina a cabeça coroada
dentro do silêncio
- que faço entre coisas?
- de que me defendo?

Anda.
no saguão
O cimento esquece
o seu último passo

Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa
e o duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura?

Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito
se elabora?

Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório?

Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa.

Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo
subsistem ao grito.

Vê-se: o canto é inútil.

O galo permanece - apesar
de todo o seu porte marcial -
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave guerreira!

Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
não seria tão rouco
e sangrento

Grito, fruto obscuro
e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.
(F.Gullar)

26/11/2007

Ciclo Infinito

"porque o pequeno é também infinito"
"em cada coisa existe uma porção de cada coisa."
(Anaxágoras de Clazômena)

Segundo a crítica, a obra do argentino Jorge Luís Borges tem como tema recorrente o infinito, tanto espacial quanto temporal, e carrega a idéia de Deus como um círculo cujo centro está em toda parte, e a circunferência em lugar nenhum.

Diante disso, vamos a dois versos do penambucano, Manuel Bandeira:

"Eis-me centro finito
do círculo infinito"

O termo "holografia" vem do grego holos: todo, inteiro; e graphos: sinal, escrita. Num pequeno pedaço de um holograma (do grego: gramma: letra) existem informações sobre toda a imagem registrada a partir de um certo ângulo. Pense numa janela coberta por um pano preto com apenas um pequeno furo. Um espectador pode enxergar toda a paisagem do outro lado; sob um ângulo muito restrito, é verdade, mas ainda assim toda a paisagem que se vê quando a janela é descoberta.

Com isso, concluí-se que o infinito se mostra no infinitesimal. Que podemos ver Deus, num poeta, num verso desse poeta, ou em qualquer outra coisa ou pessoa? Panteísmo? Imanentismo? Rotulismo? Etiquetismo? - Não sei, pergunte aos poetas eruditos e aos narradores fantásticos, e não se acanhe se forem eles nordestinos ou argentinos.

Sorte de hoje: uma curva infinita é como uma reta. (Lembre-se que ao andar pelas ruas retas e dobrar suas esquinas, você está de fato caminhando sob a superfície curva da terra.)

E como disseram, ou pintaram, Nietzsche e Picasso: depende do ângulo, do ponto de vista, da interpretação, da perspectiva.

E o último adendo: dizer, como disse Manuel Bandeira: "círculo infinito", ou dizer, como disse JL Borges: "circunferência em lugar nenhum", é equivalente. E como disse JL Borges, Deus é o centro que está em toda parte. E como disse Manuel Bandeira, cada coisa é um centro. O que equivale a dizer que Deus é todos os centros que nós somos. E cada um de nós é só um dos infinitos centros que é Deus.

Algum louco, muito doido, que algum dia viesse ler esse blog, poderia fazer a crítica dos estruturalistas de que o todo não é a simples soma das partes, é mais que isso, pois as interações, as relações entre as partes, as levam além delas mesmas. Isso explicado assim por mim. E além disso, Godël provou matematicamente, e isso eu não faço idéia, que qualquer parte de um sistema é incapaz de comprender integralmente o sistema de que faz parte.

Então, partindo brilhantemente dos motes de Manuel Bandeira e Jorge Luís Borges, chego brilhantemente à minha brilhante conclusão metafísica: somos parte divina e, justamente por isso, não compreendemos toda a divindade.

Chega.

12/11/2007

Amor

Um texto lindo sobre a distância.


"Na mensagem estava escrito: último aniversário da mamãe.

Um ano se passou e ainda lembro daquele dia como se fosse ontem. Àquele dia, um dos piores dias da minha vida.

Quatro de outubro de dois mil e seis, nove horas da manhã. Era aniversário da minhã mãe e como de costume fizemos um "café da manhã animado", cantáva-mos parabéns, quando o telefone tocou.

Minha tia aos berros (como sempre) e aos prantos ( como nunca) , mal conseguia explicar o que estava acontecendo. Saímos depressa, ainda deu tempo de encontar minha irmã pelo caminho, fomos todos juntos á casa dela.

Estava preocupada, porém não achava que a coisa era tão séria. Tudo naquele dia dera errado. Procuramos uma vaga para estacionar o carro, mas não havia uma sequer.

Deixamos nossos pais na porta do prédio e rodamos por mais de quinze minutos, quando então cruzamos com uma ambulância COMPLETAMENTE PERDIDA. Estacionamos o carro e fomos em direção ao prédio.

O elevador enguiçara. Subi pelas escadas, toquei a campainha e entrei depressa pela casa, mas ela não me esperou.

Quando adentrei o quarto havia apenas um corpo e um silêncio. Um silêncio ensurdecedor.
Jamais havia ouvido coisa igual. Não chorei. Procurei me lembrar de algumas práticas de primeiros socorros que havia aprendido na Faculdade de Enfermagem, mas nada me vinha á cabeça. Aquele silêncio não me deixava agir.

Parei.

Olhei por alguns segundos para ela, talvez um minuto, não sei. Procurei então os sinais vitais, mas todas as artérias estavam paradas.

Esperei.

Chegou então a ambulância com os " Profissionais de Saúde", estavam mais chocados do que eu. E sem nenhum toque deram o diagnóstico: Óbito.

Óbvio!

Tão óbvio que mal pude acreditar. Lembrei então do que ela sempre me dizia: Deixa de ser Frouxa menina!

Abri seu armário, procurei sua melhor roupa e a vesti. Foi difícil, nunca tinha feito isto antes. Em todo meu tempo de faculdade não havia ao menos visto alguém morto.

Quando acabei, beijei-a na testa, passei os dedos por entre seus cabelos brancos. Ela estava serena. Tão bonita!

Parecia dormir um sono profundo tendo um sonho bom.

Não sei se quando as pessoas morrem podem ver quem ficou. Mas parecia que ela estava me vendo de alguma maneira, e estava feliz.

Não feliz porque havia morrido. Ninguém deve ficar feliz quando morre!
Mas pela minha atitude, afinal, eu não fui frouxa.

Doeu.

Uma dor que nunca senti; um sentimento que me parecia eterno.
Lembrei de todas as conversas, broncas, carinho, atenção e sopas de legumes.

Chorei.

Mas hoje, um ano e vinte e um dias depois, não choro mais. Mas sinto.

Saudade.

(Carol Quintiliano Marcelino)

10/11/2007

De Franz Kafka sobre Pablo Picasso

"Ele apenas observa as deformidades que ainda não chegaram à nossa consciência.A arte é um espelho que adianta como um relógio. Às vezes"

Morada....Nações

o filósofo francês Jean-Paul Sartre disse:

"estamos na linguagem como em nosso corpo"

o filósofo alemão Martin Heidegger disse:

"a linguagem é a morada do ser"

o escritor e professor espanhol Antônio Maura disse:

"que o homem está preso na linguagem e se choca com
suas parades sem janelas. Sem janelas, mas com espelhos.
Muitos espelhos."

a escritora ucraniana, naturalizada brasileira, Clarice Lispector disse:

"o espelho é o espaço mas profundo que existe."

11/10/2007

se fosse bom...

"Longe do estéril turbilhão da rua"
(Olavo Bilac)

eis o conselho parnasiano que a poética suja de Ferreira Gullar ousou não seguir.

Pela rua

Sem qualquer esperança
detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo,
enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.

Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
e o coração dispara.

Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.

A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.

A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
solto ao fumo da gasolina queimada.

06/10/2007

Mania

nacionalíssimo, brasileiríssimo...
Carlos Drummond Verde-Amarelo.

"No corpo feminino, esse retiro
- a doce bunda - é ainda o que prefiro.
A ela, meu mais íntimo suspiro,
pois tanto mais a apalpo quanto a miro.

Que tanto mais a quero, se me firo
em unhas protestantes, e respiro
a brisa dos planetas, no seu giro
lento, violento... Então, se ponho e tiro

a mão em concha - a mão, sábio papiro,
iluminando o gozo, qual lampiro,
ou se, dessedentado, já me estiro,

me penso, me restauro, me confiro,
o sentimento da morte eis que o adquiro:
de rola, a bunda torna-se vampiro."



"A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora - murmura a bunda - esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.

Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda
redunda."

04/10/2007

Pés

Pablo Neruda faz muitas alusões aos pés, prova disso são seus versos:

"e num duplo rio chegava a seus pés,
grandes e claros"

"Acontece que me canso de meus pés e de minhas unhas,"

"Passeio calmamente, com olhos, com sapatos,"

bem como no poema

Os teus pés

Quando não te posso contemplar
Contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,
Teus pequenos pés duros,

Eu sei que te sustentam
E que teu doce peso
Sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
A duplicada púrpura
Dos teus mamilos,
A caixa dos teus olhos
Que há pouco levantaram vôo,
A larga boca de fruta,
Tua rubra cabeleira,
Pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
É só porque andaram
Sobre a terra e sobre
O vento e sobre a água,
Até me encontrarem.

e fora as citações diretas aos pés nos versos dos poemas, há inúmeras citações indiretas, por verbos como caminhar, andar, ir, vir, chegar, viajar, encontrar...

A poesia de Neruda possui a noção de movimento, e do movimento singelo dos pés descalços.

E aqui, veremos Manuel Bandeira se aproximando, a seu modo, de Pablito!

Ad Instar Delphini

Teus pés são voluptosos: é por isso
Que andas com tanta graça, ó Cassiopéia!
De onde te vem tal chama e tal feitiço
Que dás idéia ao corpo, e corpo a idéia?

Camões, valei-me! Adamastor, Magriço,
Dai-me força, e tu, Vênus Citeréia
Essa docura, esse imortal derriço...
Quero também compor minha epopéia!

Não cantarei Helena e a antiga Tróia,
Nem as Missões e a nacional Lindóia
Nem Deus, nem Diacho! Quero, oh por quem és,

Flor ou mulher, chave do meu destino,
Quero cantar, como cantou Delfino,
As duas curvas de dois brancos pés!



glossário

para os gregos, a cidade de Delphos era omphalos, ie, o umbigo do mundo; o centro absoluto do relativo círculo. E foi lá que Apolo matou a serpente e fundou seu oráculo.

Também houve um poeta brasileiro do século XIX, que se chamava Luís Delfino.

Talvez essas duas colocações lancem luzes sobre o poema, talvez; não sei!

Filmes

que se deve re-assistir (em desordem de aparição e preferência)


1.Fight Club
2.21 Grams
3.Matrix
4.Land Of The Blind
5.Closer
6.AmoresPerros
7.Adaptação
8.Quero Ser John Malkovich
9.Huricane
10.A Última Ceia
11.Adivinhe Quem Vem Pra Jantar
12.A Vida é Bela
13.Declínio do Império Americano
14.As Invasões Bárbaras
15.Cidade de Deus
16.Carandiru
17.Amarelo Manga
18.Gandhi
19.O Gosto dos Outros
20.Os Sonhadores
21.Traffic
22.O Mercador de Veneza
23.O Auto da Compadecida
24.Dogville
25.Manderlay
26.OldBoy
27.Paradise Now
28.New Orleans
29.Meu Tempo é Hoje
30.Cinema, Aspirinas e Urubus
31.Cachê
32.O Cheiro do Ralo
33.Proibido Proibir
34.Bom Pastor
35.Winters Solstice
36.O Labirinto do Fauno
37.Bonecas Russas
38.Ânsia de Amar
39.Little Children
40.O Ano em que Meus Pais Sairam de Férias
41.Lavoura Arcaica
42.Um Estranho no Ninho (a flew over the cuckoo´s nest)
43.Laranja Mecânica (the clockwork orange)
44.Casa de Areia
45.Um Copo de Cólera
46.Princesas
47.Finding Forrest
48.Náufrago
49.Apocalipto
50.Pollock
51.Modigliani
52.Zelig
53.Amnésia
54.A Lenda de Beowulf
55.O Amor nos Tempos de Cólera
56.Sombras de Goya
57.A Vida dos Outros
58.A Bússola de Ouro

03/10/2007

Semelhanças

do poema "Lua" de Manuel Bandeira, citado abaixo, e do prólogo do livro Espumas Flutantes (bem sugestivo), de Castro Alves, vejamos:

"Era por uma dessas tardes em que o azul do céu oriental - é pálido e saudoso, em que o rumor do vento nas vergas - é monótono e cadente, e o quebro da vaga na amurada do navio - é queixoso e tétrico."

(...)

"Foi então que, em face dessas duas tristezas - a noite que descia dos céus, - a solidão que subia do oceano -..."

(...)


'Uma esteira de espumas... - flores perdidas na vasta indiferença do oceano. - Um punhado de versos... - espumas flutuantes no dorso fero da vida!..."

E o que são na verdade estes meus cantos?

Como espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos da musa - este sopro do alto; do coração - este pélago da alma."

02/10/2007

Contradição?

Satélite

Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A Lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite.

Desmetaforizada,
Desmistificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro do loucos e dos enamorados.
Mas tão somente
Satélite.

Ha Lua deste fim de tarde,
Demissionária de atribuissões românticas,
Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
- Satélite.
(Manuel Bandeira)

Lua

A proa reta abre no oceano
Um tumulto de espumas pampas.
Delas nascer parece a esteira
Do luar sobre as águas mansas.

O mar jaz como um céu tombado.
Ora é o céu que é um mar, onde a lua,
A só, silente louca emerge
Das ondas-nuvens toda nua
(Manuel Bandeira)



No primeiro poema Bandeira parece assumir um discurso positivista em sua poesia, o que não deixa de ser curioso, pois o discurso positivista é anti-mitológico, por se recusar a ver a Lua como algo mais que um satétlite terrestre, como uma deusa por exemplo, e assim é também anti-poético. E nesse poema Bandeira assume uma linguagem anti-poética. Apenas para recuperá-la, no mesmo livro, cinco páginas depois. Referindo-se ao mesmo objeto, agora não mais recebendo um tratamento puramente científico, mas re-vestido de seu carácter poético. Onde, não ingenuamente, é utilizada novamente a noção de espelho ao ser o mar um reflexo do céu, o céu um reflexo do mar. O que é magistralmente posto no neologismo "ondas-nuvens".

Agora, pode-se perguntar: por que a negação de um discurso para reafirmá-lo logo depois? Alberto Caeiro bem atentou para o carácter contraditório dos poetas que ora olham para um lado, ora olham para o outro. E que são sempre iguais, sendo a cada instante diferentes. Mas o caso aqui nem parece chegar a tanto.

Sempre aprendi na escola e nos manuais de literatura que esse poema é um ícone do modernismo (não por acaso um dos mais citados e conhecidos do poeta) porque ele retrata fielmente uma visão de mundo deprimida, pessimista, um discurso poético invadido pela linguagem não-poética, numa espécie de arrebatamento da poesia pela linguagem positiva, analítica.

Hoje, me admito refutar esse argumento que me foi encucado depois de tanto tempo. Vejamos porquê: Repare, na primeira estrofe, no uso de palavras como: plúmbeo e cosmograficamente que são palavras bem à guisa do rigor científico. Repare, então na segunda estrofe, a tripla e seguida repetição do prefixo: "des" que significa justamente a negação. Agora o mais importante, repare nas duas últimas estrofes na inclusão das palavras: demissionária, show, mais-valia.

Pra mim, nesse poema, trata-se de uma ironia. Usando largamente conceitos marxistas, Bandeira conclui que num mundo onde demissão, que causa o exército industrial de reserva citado por Marx em sua obra, é uma palavra corrente, inclusive poética, num mundo onde a mais-valia(outro termo de Marx), que explora o trabalhador que ainda não foi demitido, também é prática corrente e palavra agradável. E que num mundo onde essas demissões e essa mais-valia agem em prol di maior lucro dos capitalistas que bem ao modo do amecican way of life acham que a vida é um show !

Nesse mundo sim faz todo o sentido a destituição da linguagem e do pensamento poéticos e mitológicos. Mas em outros mundo possíveis, com os quais ainda sonha o poeta (e bem nos disse a Nobel de física "a realidade é apenas uma das possilidades"), nesses outros mundos, nessas outras ordens de fantasia, ainda cabe a linguagem que o poeta emprega e confirma e no segundo poema.

30/09/2007

Cuba

El Reloj (Luis Palés Matos)

Con una incontrastable isocronía
canta el reloj las horas que transcurren,
y cual gnomos, por su armazonería,
como suspiros, rápidas, se escurren.

Quizá el tedio lo mata, y a porfía
las dos agujas del reloj, se aburren,
de estar marca que marca todo el día,
arcano idioma que ellas no discurren.

Mirado desde lejos, tiene aspecto
extraño y mitológico, de insecto
que ye correr la vida, indiferente;

y el péndulo, una lengua centelleante,
hiperbólicamente jadeante
que se mofa del tiempo eternamente.

Viola

"...
no colo da bem-vinda companheira
no corpo do bendito violão
eu faço samba e amor a noite inteira
não tenho a quem prestar satisfação..."
(Samba e Amor - Chico Buarque)

"...
ah, meu samba,
tudo se transformou
nem as cordas
do meu pinho
podem mais amenizar a dor
(...)
violão, até um dia
quando houver mais alegria
eu procuro por você
cansei de derramar
inultimente em tuas cordas
as desilusões desse meu viver..."
(Tudo Se Transformou - Paulinho da Viola)

"
Ah! essas cordas de aço
este minúsculo braço
do violão que os dedos meu acariciam

Ah! esse bojo perfeito
que trago junto ao meu peito
só você violão compreende porque
perdi toda alegria

E no entanto meu pinho
podes crer, eu adivinho
aquela mulher
até hoje está nos esperando

Solte seu som da madeira
eu, você e a companheira
na madrugada, iremos pra casa
cantando."
(Cordas de Aço - Cartola)

"
Tendida en la madrugada,
la firme guitarra espera:
Voz de profunda madera
Desesperada.

Su clamorosa cintura,
en la que el pueblo suspira,
preñada de son, estira
la carne dura.

Arde la guitarra sola,
mientras la luna se acaba;
arde libre de su esclava
bata de cola.

Dejó al borracho en su coche,
dejó el cabaret sombío,
donde se muere de frío,
noche tras noche,
y alzó la cabeza fina,
universal y cubana,
sin opio, ni mariguana,
ni cocaína.

¡Venga la guitarra vieja,
nueva otra vez al castigo
con que la espera el amigo,
que no la deja!

Alta siempre, no caída,
traiga su risa y su llanto,
clave las uñas de amianto
sobre la vida.

Cógela tú, guitarrero,
límpiale de alcol la boca,
y en esa guitarra, toca
tu son entero.

El son del querer maduro,
tu son entero;
el del abierto futuro,
tu son entero;
el del pie por sobre el muro,
tu son entero...

Cógela tú, guitarrero,
límpiale de alcol la boca,
y en esa guitarra, toca
tu son entero. "
(Guitarra - Nicolás Guillén)

28/09/2007

Maestria

do mestre,
João Cabral de Melo Neto

O Relógio

1.
Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.

Se são jaulas não é certo;
mas perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quebradiço da forma

Umas vezes, tais gaiolas
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.

Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;

e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade

que continua cantando
se deixa de ouvi-lo a gente:
como a gente às vezes canta
para sentir-se existente.

2.
O que eles cantam, se pássaros,
é diferente de todos:
cantam numa linha baixa,
com voz de pássaro rouco;

desconhecem variantes
e o estilo numeroso
dos pássaros que sabemos,
estejam presos ou soltos;

têm sempre o mesmo compasso
horizontal e monótono,
e nunca, em nenhum momento,
variam de repertório:

dir-se-ia que não importa
a nenhum ser escutado.
Assim, que não são artistas
nem artesãos, mas operários

para quem tudo o que cantam
é simplesmente trabalho,
trabalho rotina, em série,
impessoal não assinado,

de operário que executa
seu martelo regular
proibido (ou sem querer)
do mínimo variar.

3.
A mão daquele martelo
nunca muda de compasso.
Mas tão igual sem fadiga,
mal deve ser de operário;

ela é por demais precisa
para não ser mão de máquina,
e máquina independente
de operação operária.

De máquina, mas movida
por uma força qualquer
que a move passando nela,
regular, sem decrescer:

quem sabe se algum monjolo
ou antiga roda de água
que vai rodando, passiva,
graças a um fluido que passa;

que fluido é ninguém vê;
da água não mostra os senões:
além de igual, é contínuo,
sem marés, sem estações.

E porque tampouco cabe
por isso, pensar que é o vento,
há de ser um outro fluido
que a move: quem sabe, o tempo.

4.
Quando por algum motivo
a roda de água se rompe,
outra máquinha se escuta:
agora, dentro do homem;

outra máquina de dentro,
imediata, a reveza,
soando nas veias, no fundo
de poça no corpo, imersa.

Então se sente que o som
da máquina, ora interior,
nada possui de passivo,
de roda de água: é motor;

se descobre nele o afogo
de quem, ao fazer, se esforça,
e que ele, dentro, afinal,
revela vontade própria,

incapaz, agora, dentro,
de ainda disfarçar que nasce
daquela bomba motor
(coração, noutra linguagem)

que, sem nenhum coração,
vive a esgotar, gota a gota,
o que o homem, de reserva,
possa a ter na íntima poça.

27/09/2007

Folk-Lore

A lira do povo
toca de novo...

"
Chega como eu cheguei
pisa como eu pisei
No chão que me consagrou

Olha que lei é lei
lei que eu nunca burlei
Pois Deus me designou

Olha que lei é lei
lei que eu nunca burlei
Pois Deus me designou

Ao me ver já diz que me conhece
Sem saber bem que eu sou
Conhece mas desconhece
meu real interior

Conhece mas desconhece
meu real interior

Eu sou verso e sou reverso
sou partícula do universo
Sou prazer, também sou dor

Eu sou causa, sou efeito
Eu sou torto e sou direito
Enfim eu sou o que sou

Chega então...

Chega como eu cheguei
pisa como eu pisei
No chão que me consagrou

Olha que lei é lei
lei que eu nunca burlei
Pois Deus me designou

Olha que lei é lei
lei que eu nunca burlei
Pois Deus me designou

Vem na pureza do vento
Na luz que o sol reluz
Sonho que me conduz ao choro
no pé da cruz

De tudo que faz a vida
Desmerecer a razão
E meus olhos se confundem por ver
Tanta ingratidão
"

25/09/2007

Mais

do livro: Martim Cererê; de Cassiano Ricardo
(obra-prima. obra rara.)

Coema Piranga

de primeiro no mundo
só havia sol mais nada
noite não havia

havia só manhã
uma manhã espessa
com a coroa de plumas
vermelhas à cabeça
só manhã no mundo

pois noite não havia
só manhã no mundo
sem nenhuma idéia
de haver noite nem dia

era tudo brasil
tudo era madrugada
não havia mais nada
todas as mulheres
eram filhas do sol
na manhã gentil

e os homens cantavam
que nem pássaros nus
pelos galhos das árvores
sem noite sem dia
porque só havia sol
noite não havia

no começo do mundo
tudo era madrugada
tudo era sol mais nada
tudo amanhecia
permanentemente
nem contínuo arrebol

sem ara nem pituna
sem noite nem dia
cantava o tié-piranga
num ramo do sol
sem nenhuma idéia
de uma noite haver noite
ou de um dia haver dia

mas dois frutos havia
e num deles morava
a Noite no outro o Dia
mas ninguém sabia
em que galho em que arbusto
é que a Noite estaria
e onde estava o Dia

não havia o medo
de perder a hora
ou contar-se um segredo
só havia sol se rindo
se rindo grande e real
como um ruivo animal
dentro do matagal

de primeiro no mundo
noite não havia
tudo era mesmo dia
que tanto sol que havia
era o tempo imóvel
não havia esta coisa
chamada noite e dia
só havia sol mais nada
noite não havia

só manhã no mundo
noite não havia

23/09/2007

espelho d´água

"Um dia um reino resolve declarar guerra a Yemanjá, sabendo que ela não tinha guardas que a protegiam. Então Yemanjá, depois de muito pensar no que deveria fazer para se proteger e vencer a batalha, resolve colocar espelhos de todas as formas na Beira do mar. Quando chega a hora da batalha, Yemanjá vai para a frente dos espelhos com uma espada em punho e quando seus inimigos chegam perto assustam-se com as suas próprias imagens distorcidas refletidas nos espelhos e fogem apavorados contando ao rei que Yemanjá não é sozinha como haviam pensado, mas possui um exército de criaturas horríveis. É assim que Yemanjá vence, sozinha, mostrando a imagem de seus inimigos a eles próprios."

Lacan, ou Jung, disse que os mitos melhor revelam o humano que a ciência.

20/09/2007

Ainda

sobre relógios e espelhos:

Cassiano Ricardo.


Morte em câmara de gás

Tão certa a morte
que inútil marcar-lhe
uma hora exata.
Gosto da lei em ser
exata
não
apenas certa.

Nenhuma razão
pra tanto amor
ao relógio, ao
necrológio.
A data é que lhe põe
(felina) uma gota
de fel em cada
minuto.
E o mata com uma
lentidão de faca.

A justiça, olhos
fechados como os
da noite.
A câmara de gás
talvez
menos vil
se à noite.

Na cela em que o
condenado
dorme
sem data
olhos fechados
como os da justiça.


A física do susto

O espelho caiu a parede.
Caiu com ele o meu rosto.
Com o meu rosto a minha sede.
Com a minha sede eu desgosto.
O meu desgosto de olhar,
no espelho caído, o meu rosto.

19/09/2007

Errata

No texto sobre os espelhos e a literatura fantástica, não citei "O Menino Através do Espelho", de Fernando Sabino, porque comecei a ler, mas não tive ânimo para terminar.

E não citei "Alice Através do Espelho" de Lewis Caroll porque nunca cheguei a ler.

Mas há uma obra que li e reli e que não podia ter ficado de fora. Tanto no texto sobre os espelhos como no texto sobre os relógios.

Mas, graças a Carol, posso me livrar do meu erro. Trata-se de um conto de Machado de Assis: "O Espelho (Esboço de uma nova teoria sobre a alma humana)".

O conto fala de um cidadão que alcançou um alto posto social, e, de repente se vê só, sem as bajulações constantes que o lembram constantemente do privilégio de sua posição. E, a partir daí, o tempo, antes tão agradável, passa a ser massacrante. E sua imagem no espelho, começa a desfocar-se (é notável essa passagem fantástica na literatura realista de Machado). E sua reflexão no espelho só se reestabelece depois que o personagem, solitário, veste sua farda em frente ao espelho, e, narcisamente, se admira e se relembra de seu status social, ainda que distante de qualquer convívio.

Algumas passagens do texto:

"Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência(...) quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo."

"Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro pra fora, outra que olha de fora pra dentro. (...) As duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja."

- Ou um tomate, digo eu!

"um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas."

"Minha solidão tomou proporções enormes. (...) As horas batiam século a século, no velho relógio da sala, cuja pêndula. tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! Confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: Never, for ever! - For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada."

"Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac."

"era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária(...) deu-me na veneta olhar o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não me permite negar que o espelho reproduziu-lhe textualmente, corri os mesmos contornos e feições, assim devia ter sido. Mas tal não foi minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava, receei ficar mais tempo e enlouquecer.(...) E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado.(...). De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos."

"Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento...Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e...o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente(...) ei-la recolhida no espelho."

"olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado, Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando."

ps: L'eternite est une pendule, dont le balancier dit et redit sans cesse ces deux mots seulement dans le silence des tombeaux: "Toujours! jamais! Jamais! toujours!"
(Jacques Bridaine)

ficam como sugestões o poema de Henry Longfellow, citado por Machado: "The Old Clock on the Stairs"
e o poema "The Raven" de Edgar Allan Poe, e a tradução de Fernando Pessoa: "O Corvo".

Vox Populi

Jiló Com Pimenta

(Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho)



"Pimenta pode ser da mais ardida
Pois no meu peito já houve ardência maior
Não tenho preferência por comida
Obrigado nessa vida, já engoli coisa pior
Por isso ô nega, ô nega pode preparar o jiló
Ô nega pode prepará,
Ô nega pode preparar o jiló

Mais pimenta

Já engoli sapo, já tomei café puro ninguém teve dó
Aprendi que nesse mundo não se dá ponto sem nó
Sou vagabundo sofrido quase reduzido a pó
Por isso nega, ô nega, pode preparar o jiló
Ô nega pode prepará, ô nega pode preparar o jiló"

18/09/2007

TopiCruZinhos

1. Desde que comecei a estudar filosofia, uma das coisas que mais me fascinou sempre foi a genialidade dos alemães. E uma das coisas que mais me orgulho é ter aprendido a soletrar nomes como: Schopenhauer, Nietzsche, Wittgeinstein e Horkheimer.

2. Uma frase do excelente filófoso, Gaston Bachelard, que excelentes filósofos, como Heráclito, Sócrates, Schopenhauer, Nietzsche, Foucault e Bordieu, certamente simpatizariam.

"A verdade é filha da discussão, não da simpatia"

3. Estive pensando a beleza de poesia que é uma estrutura de DNA, o apelo estético que possui aquela verdadeira dança. Onde cada fita busca a outra incessantemente. E mesmo com o contato sempre adiado, pela intransposição dos obstáculos, nunca chega a desistência, a desesperança. Aprendamos essa lição de vida que a microbiologia nos dá. E lembremos também de Sísifo, que insiste em empurrar sua pedra morro a cima, só para depois vê-la rolar morro abaixo. Não sei se se trata de um asno teimoso, ou de um gênio persistente e invencível. E lembremos também de Albert Camus quando diz que "é preciso imaginar Sísifo feliz!".

17/09/2007

Alien

alien é o semantema do verbo alienar, que significa: tornar alheio. Alien, alienare, vêm do latim e siginificam: outro. Daí, a palavra alienígena, gerado em outro mundo, fora do planeta Terra. Extra-Terrestre.

A alienação, quando se refere aos bens materiais, é termo jurídico, que sigfinica o ato de cessar os bens. Cessar para você e ceder para outrem.

Mas também é termo psicológico, vide o "Alienista" de Machado de Assis. No que se refere a um sentimento de marginalidade, de afastamento do mundo, algo como o autismo, ou a idiotice, termo grego cuja raiz é "id", que possui correspondente latino "ego", e correspondente neo-latino "eu", no português.

O alienado, o autista, o idiota, não percebe e não se importa com o mundo a sua volta, feito de outras consciências perceptoras e conflitantes (o inferno existencialista). Esse sujeito cria seu próprio mundo, no seu egocentrismo fantástico.

A filosofia, a ciência, desde cedo, combateram a alienação, a idiotice. Pregando, desde a antiguidade, o engajamento político do cidadão (animal político de Aristóteles) e criando terapias para os loucos, anormais, alienados racionais. Sem nunca definir exatamente o que seja a normalidade, é bom que se diga.

Pelo contrário, as artes, literaturas, poesias, mitologias, as religiões, apostam em certas alienações coletivas, em certas idiotices grupais. Deve ser por isso que são mal-vistas pela racionalidade. Vide Marx e sua noção de "ópio do povo".

O que se pode discutir é que as racionalidades talvez sejam exemplo de autismos sociais tanto quanto qualquer outra "irracionalidade". Vide Raymond Aron e sua noção de "religião secular".

14/09/2007

Tempo

Refletidos os espelhos, apontaremos os relógios, que também são símbolos de maior importância.

Durante toda a antiguidade até a idade média, era considerada vilania a cobrança de juros. Se argumentava que não se pode vender o que não se tem, nem comprar o que não se pode ter. E cobrar juros é negociar o tempo, e se o tempo pertence a Deus (Chronos para os pagãos) nenhum homem pode comercializá-lo.

Porém, com o advento do capitalismo, logo lá no comecinho, com o início da derrocada dos grandes sistemas europeus de feudos, e o ressurgimento e solidificação de cidades-Estado nas vias de importantes rotas marítimas e comerciais (mercantilismo), e com a existência de um povo discriminado das mais importantes atividades econômicas (judeus), a prática de empréstimos a juros começou a amadurecer e finalmente chegou pra ficar. Para tanto, ver "O Mercador de Veneza" de Willian Milk Shakespeare, o livro. E ver também a adaptação em filme. com Robert De Niro, como o banqueiro Shylock.

Então, se o tempo passou a ter custo, a ter preço, se as badaladas dos sinos e o cucar dos cucos entraram na lógica das curvas cruzadas de oferta e demanda, é bem evidente que o girar dos ponteiros ficou bem mais endurecido. Pouco importa se o tempo é medida relativa, que, junto com o espaço, se contrai e se dilata. Muito importa quanto vale o tempo, qual a taxa de juros aplicada ao montante, qual o prêmio pelo risco, qual o spread entre as taxas de juros interna e externa.

Então, os dias que são muitos, e eram de muitos deuses, passaram a ser de um só deus: Mamôn. Inclusive o sabath dos judeus, o dia de Saturno (saturday) dos anglo-saxões, e o nosso sábado, que hoje em dia é domingo, que era dia do Sol (sunday).

Alguns exemplos recentes dessa relação com o tempo são as cadeias fast-food. Se o pizzaiolo e o motoqueiro demorarem mais de meia hora pra entregar a sua pizza você como a pizza de graça, e é muito claro que eu não quero te dar minha pizza de graça, eu quero teu dinheiro, então chicote no moto-boy e no cozinheiro.

As fábricas modernas orientais, que surgiram no último quarto do século passado, pós-crise do petróleo e crise das linhas de montagem fordistas, são chamadas just-in-time, nome bastante sugestivo. Os insumos que o produtor necessita precisam estar disponíveis no exato momento em que forem requeridos, nem antes nem depois. E o cuco cuca.

Nessas fábricas, sobretudo as de microeletrônica e de automóveis, são notórias suas práticas de flexibilização, dinamismo e mobilidade das relações de produção. Parmênides, Zenão, Platão e Aristóteles se contorcem querendo sair do túmulo.

E acho que as artes, principalmente o cinema e a literatura (aliados), demonstraram os sintomas dessa ditadura dos relógios, e vou citar os exemplos.

No Labirinto do Fauno(que é passagem importante nas mitologias gregas), o vilão possui um relógio de prata que foi de seu pai e que permitiu ao filho (o ditador) saber a exata hora da morte de seu progenitor, e quando o ditador morre, pede para que dêem seu relógio a seu filho recém-nascido para que ele tome ciência exata da hora em que o pai faleceu.

No Lavoura Arcaica, filme baseado no livro do brasileiro-argelino Raduan Nassar, a figura do avô é uma figura sinistra, parva, turva, opaca, e a única coisa que reflete a luz em tal figura é um relógio de bolso dourado.

No Little Children, outra adaptação de livro, que ganhou Oscar, a presença dos relógios são massacrantes, a ponto de uma das antagonistas controlar o tempo de maneira absurda. Chama as crianças na exata hora para o lanche, e para solucionar os problemas sexuais com o marido, faz sexo em horas pré-estabelecidas. Mas a principal noção de tempo explorada no filme é o tempo se dilata de tal maneira que os personagens, todos em idade adulta, permanecem num estado infantil infindável.

No Clube da Luta, mais uma adaptação de livro (Chuck Palaniuck) o protagonista trabalha numa companhia de seguros, portanto negocia o tempo e pior, negocia o tempo sobre conceitos calamitosos, como desastres automobilísticos; a ponto de ter devaneios com quedas de aviões, enquanto ainda está nos aviões! E tal personagem começa a perder a noção usual de tempo, o que o leva ao máximo de explodir o próprio apartamento. Ele começa a mostrar os sintomas de perda de noção temporal quando começa a guiar seu calendário pela cor da gravata que o chefe usa. Se a gravata é azul ou amarela, ele deduz que deve ser terça ou sexta-feira.

Nos filmes De Volta Para o Futuro e Efeito Borboleta são usadas algumas teorias famosas das ciências físicas e matemáticas para dar mote ao enredo. Como a noção de elasticidade do tempo de Einstein e da Teoria do Caos. Entretanto, nesses filmes as voltas e revoltas no tempo são sempre previamente anunciadas, para que o telespectador não se perca na história.

No filme Amnésia, o protagonista sofre de perdas de memória, e conserva suas reminiscências ao longo do próprio corpo, ao final de cada dia ele tatua todos os eventos em sua pele para que possa lembrar deles no dia seguinte. Aqui vale lembrar que o verbo para reminiscências, em inglês, é remember, isto é, remembrar, tornar membro novamente. Como se cada evento, cada fenômemo que nós presenciássemos ficasse gravado em nosso corpo. Como se as memórias fossem membros acoplados em nossos corpos além de nossos braços e nossas pernas. E que cada esquecimento fosse um desmembramento. E cada lembrança um remembranmento. Remember. E como o personagem se esquece o tempo todo dos eventos, o filme também se esquece, e assim, vem e vai, o tempo todo, no tempo, para buscar as respostas.

Outro filme que explora com maestria a relação de tempo é 21 Gramas, nele há uma descontrução do tempo através de uma narrativa não linear. Não se usa uma simbologia, como os relógios, para se referir ao tempo, mas se usa a própria estrutura de narrativa do roteiro. Onde se permanece o tempo todo no limite extremo entre a confusão total e a elucidação. Entre a redundância e a informação. Por não seguir uma cronologia convencional, cada cena, por mais pequena, pode trazer explicações absurdas sobre o que realmente se passa no enredo.

Para citar mais uma obra literária, no livro Budapeste, também se encontra esse artíficio de narrativa não linear que confunde o leitor sobre as conexões das imagens e a realidade dos eventos.

E por fim, nas artes plásticas, temos o modernismo surrealista de Salvador Dalí, e as imagens de seus relógios oníricos se dissolvendo no espaço-tempo.

Reflexões

Médium. Mídia. Meio. Mediação.

São palavras que possuem a mesma raiz etimológica.

A internet, por exemplo, é o meio por onde se comunicam os blogueiros. Ela faz a mediação entre os que lêem e os que escrevem. Uma mídia com um grau de interatividade muito maior do que a televisão, onde cada leitor pode tornar-se instantaneamente um escritor, cada receptor é simultaneamente emissor. A internet é o médium pós-moderno.

Porém, a palavra: "médium" acabou por assumir um carácter exclusivamente místico, siginificando aquilo que faz a mediação entre mundos distintos e separados, como o mundo dos mortos e dos vivos e o mundo das idéias e das matérias. E essa mídia geralmente é olhada com desdém e tratada como exótica, no viés de outras visões "lógicas".

Há outra mídia muito importante ao longo da história e também vista com muito ridicularizar nos últimos tempos. Se trata dos "aedos", trovadores, poetas, que fazem a ligação entre esse mundo e outros mundos fantásticos.

Há semelhanças claras entre as mediações místicas e as fantásticas, mas, a meu ver, os mediadores do primeiro caso pregam a existência de um mundo fora desse mundo e mais, um mundo sobre esse mundo; um super-mundo, no topo de uma hierarquia. Daí porque me parece que Platão foi tão importante para Alan Kardec.

Agora, diferentemente dos médiuns religiosos, os médios artísticos fazem a ligação desse mundo com ele mesmo, o que eles alteram são as ordens. As fantasias são ordens distintas da mesma realidade que estamos acostumados a olhar pela ótica rotineira, enfadonha e simplória.

Bertrand Russell, em Introdução à Filosofia Matemática, demonstra que a ordem dos números naturais que começa em 1 e vai sempre acrescentando mais um até onde der, está longe de ser a única ordem pela qual os números podem ser arrumados, não é nem ao menos a ordem mais correta, é simplesmente a ordem mais simples. E nos acostumamos tanto a ela, desde a infância, que chegamos a achar que só existe essa. Ledo engano.

Aliás, Russell diz que nós nem ao menos ordenamos as coisas, ou os números, conforme o exemplo; ao contrário, todas as coisas já têm entre si todas as ordens a que são possíveis. O que compete a nós, observadores, é apenas atentar para elas. Para as coisas e suas ordens.

E eu acho que esses artistas de palavras fazem justamente isso, desvelam outras ordens. Ocultas não porque essencialmente ocultas, mas por nossa falta de visão em buscar novas ordens, que são igualmente aparentes, porém menos simples, menos "racionais", enfim muito doidas e fantásticas. Pura perda de tempo, talvez.

Acredito que os fantasistas agem como espelhos desse mundo, espelhos ativos que rearranjam as coisas, que fazem a ligação desse mundo com ele mesmo, refletem sobre ele, e acham novas conexões, e, por isso, são espelhos ativos, que apontam, indicam.

E assim chegamos a um símbolo muito importante na histórias das fantasias, das mitologias, que são justamente os espelhos.

Os espelhos já eram simbolizados antes mesmo de existir como um artefado de vidro e metal, quando ainda eram meras lâminas-d´água. Daí Narciso que, já nas mitologias antigas, usava os espelhos para metaforizar muito menos o galã que se auto-admira do que o dogmático que se prende e se perde absurdamente nas certezas de suas reflexões.

A metáfora dos espelhos também está presente em outras passagens famosas como nos contos de fadas "A Branca de Neve". Nos contos fantáticos modernos, Jorge Luís Borges, em "Ficções", diz ser possível construir um universo movido apenas por espelhos e enciclopédias; ainda na literatura temos o espelhamento em "Budapeste" de Chico Buarque, que, como disse Caetano, faz um jogo de espelhos, onde se perde a referência do objeto refletido e, portanto, cada reflexão passa a ser a apresentação do objeto real.

No cinema, temos "Fight Club", onde o protagonista olha o tempo todo pra si mesmo ao olhar para outros personagens como Tyler Durden e Marla Singer. Em "21 Grams", o espelhamento nos dá a noção de paralelismo e de dialética, quando os dois protagonistas ganham corações novos e sádios, um pela religião, outro pela ciência, para repor seus antigos corações enfermos. E depois da redenção, a queda; os novos corações limpos se sujam e envelhecem. E ascensão e queda também nos remetem aos espelhos, pois a via que desce; diante do espelho, sobe. Como nos diz Heráclito: "o caminho para cima e para baixo é um e o mesmo". No espelho, o sinistro se faz destro e o destro se faz sinistro.

Nas artes plásticas, temos as obras de René Magritte e Juan Velásquez que exploram a noção de espelhamento e reflexão e as possíveis confusões que daí podem surgir. Na introdução do livro "As Palavras e as Coisas" Michel Foucault faz um estudo de 20 páginas sobre um quadro de Velásquez (As Meninas) e mostra como o artista, usando o artifício do espelho, multiplica em vários o centro da obra, de maneira tal que não se percebe um centro principal e, a exemplo do Budapeste de Chico Buarque, o objeto que se apresenta se confunde com suas reflexões, e, assim, cada nova reflexão e como a apresentação de um novo objeto que se metaformoseia a cada instante.

Na filosofia, nos remetem as metáforas dos espelhos as noções dos antigos gregos de mimesis e reminiscências, que são algo como imitação e lembrança, respectivamente. Os espelhos passivos se contentam com a mera imaginação reprodutora (termo de Bachelard), ou lembrança rotineira (Bergson), que consiste em algo como uma memória mecânica que apenas reproduz os objetos que se lhe apresentam.

Mas como já foi dito, aqui se tratam de espelhos ativos, que possuem imaginação criadora (Bachelard), lembranças intencionais (Bergson), que lembrando e imaginando, imitam de uma forma diferente, criam o novo. Reparam, mostram e refletem o que estava eclipsado.

Acho que também se faz importante uma citação a revolução que Kant promoveu na epistemologia filosófica ao admitir a questão do sujeito como central, algo que, penso, já teve início em Descartes. Não se trata apenas da consciência que imagina, reflete, cria e reproduz imagens exteriores a si. Fala-se agora da consciência que se volta sobre si mesma, que se reflete, busca uma imagem própria de si para si. E assim temos um espelho de frente pro outro, e reflexões dentro de reflexões, infinitamente. E a indissociação entre objeto refletido e objeto refletor.

De volta ao cinema, no Filme "Adaptação" dos excelentes irmãos Kaufman, gêmeos diretores e roteiristas, o espelhamento é magistralmente utilizado para confundir, na obra, o que é "realidade" e o que é "ficção". O autor do filme e o próprio filme se confundem e fica muito difícil separar as coisas "racionalmente". "Mais Estranho que a Ficção" tentou fazer um plágio da idéia, acho que não deu muito certo.

Por fim, fica aqui a dica para que se veja uma obra-prima do cinema fantástico, dos irmãos Kaufman: "Quero ser John Malkovich". E fica o conselho para que reflitamos ativamente sobre as coisas e suas ordens, e busquemos o novo e o inusitado.

13/09/2007

A Verdade

I

É muito famosa, nas mitologias subsaarianas pré-cabralinas e pré-colombianas, a lenda do whiteless man que foi levado como escravo e que, ainda no cativeiro, escrevia versos livres e brancos e revolucionários. Dizem até que ele esteve no germe da Revolta de Palmares e influenciou a queda da Bastilha.

O fato é que a civilização de onde vinha tal guerreiro era bastante avançada, pois já conhecia a moeda e a palavra, e também conhecia a pólvora, mas não conhecia como usá-la, daí não ter sido a civilização mais avançada (ie, no topo da cadeia alimentar) e ter padecido e sido subjulgada.

Conta-se que na terra natal do guerreiro, havia um Rei que era um semi-Deus, e que um dia, no centro da praça, esse Imperador sussurrou uma palavra. E sussurrou tão baixo qual uma brisa, que foram poucos os que o ouviram e mais poucos os que o entenderam. E os que ouviram sem entender ficaram surdos, tiveram seus tímpanos estourados. E os que ouviram e entenderam ficaram mudos, suas cordas vocais sumiram, e, desde então, se diz que tais entendem até os cantos dos pássaros, mas não são capazes de um simples assovio.

Diz-se também que o tal Rei, semi-Homem, ao sussurrar aquela palavra, lançou ao ar uma moeda, e, daquele momento até os dias de hoje e para todo o sempre, essa moeda gira no ar, sem nunca cair ao chão. E quando toca o solo é somente por um instante de tempo ínfimo, com a única finalidade de tomar um impulso maior para tornar a voar, e ainda mais alto.

E mesmo com toda a infimidade do instante em que a moeda toca o solo, ela causa tal impressão nos mudos que durante 365 semanas ficam a se contorcer em caretas que os cientistas ainda não definiram se são de gozo ou de dor. Pressupõem-se que a origem de tal evento esteja numa frequência sonora absoluta.

Mas contundo e entretanto, profetiza-se que haverá o dia em que a moeda tocará definitivamente o solo, porém profetiza-se também que ela caíra de pé, e que a peleja será interrompida, mas não definida. E ainda nas linhas das profecias, diz-se que uma brisa chegará de algum lugar um dia, derrubará a moeda e decidirá por uma das faces.

Especula-se que até esse dia a humanidade se dividirá em dois enormes blocos, enormes, mas dois apenas, postos cada qual em frente a um dos lados da moeda, e que esses dois enormes blocos soprarão horrores. Nascerão homens naturalmente evoluídos e geneticamente modificados com pulmões enormes e nascerão máquinas minúsculas capazes de por em movimento uma quantidade inquantificável de ar.

Mas que nada disso terá qualidade. O que derrubará a moeda será uma brisa leve. E nenhum dos dois blocos deverá ter essa revelação, e que se a tiver que não se acredite nela, e se acreditar que hajam como se não cresse, ou melhor, como se nem soubesse.

E por fim, acredita-se que essa brisa virá dos calcanhares do guerreiro que partiu no começo da história.

12/09/2007

Lute!

Heráclito nos disse, há 2 vírgula 5 milênios atrás, que o combate é o princípio de tudo.
Vos digo hoje, então, para que telespectem o filme "Fight Club" and "recycle your animals".

Ah! and "lose your tie!"

11/09/2007

Tópicos

1. Hoje de manhã na aula de economia regional e urbana com ênfase na região fluminense (olha!), a professora nos ensinou o conceito social de não-lugar, que consiste nos lugares que não trazem as marcas específicas e distintivas, naturais e sociais de onde estão. Lugares que não existem, grosso modo. Ou que não deveriam existir, pelo menos não com o destaque que possuem.

E como exemplo ótimo dos não-lugares ela citou os shoppings centers; que na capital de São Paulo, no interior de Minas Gerais, nos Estados Unidos e no Japão são idênticos. E você muito mal consegue diferenciar as culturas dentro desses prédios. O máximo do estereótipo e do esvaziamento. Um local social dessa magnitude sendo produzido em larga escala ao redor do globo a ponto de perder seu carácter e virar pelo avesso.

2. Deparei-me com um livreto: "O Que É Utopia?" em cuja capa havia uma pirâmide de cabeça pra baixo. A imagem representa muito bem o termo, que normalmente consiste em subverter, virar de cabeça pra baixo, a ordem vigente. Mas a ordem vigente possui engenharia tão complexa que subvertê-la é muito complexo, mantê-la subvetida ou subvertente é muito mais. Como manter em pé uma pirâmide sustentando-a sobre apenas um de seus vértices. E depois vem a idéia de "revolução permanente de Trotsky" e de revolucionar a revolução, aí se chega aos paroxismos e à Babilônia e neguinho já começa a pensar que a melhor maneira de subverter a pirâmide é descer a marreta nela, ou transformá-la num quadrado, ou, meticulosamente, com o martelo e o cinzel, fazê-la uma esfera.

3. Não sou muito afim com as filosofias idealistas, porque querem que a matéria tenha origem nas idéias e formulam suas idéias com origem na matéria. Entendeu? Tento explicar: pensa-se sempre que o mundo ideal é imutável, estável para todo sempre. E que coisa mais chata. Pra mim, se a realidade aparente possui dinamismo, a realidade ideal o deve possuir muito mais. Aristóteles, que foi a antítese de Platão, imaginou o idealismo da seguinte forma: tudo se move, e tudo que se move se move porque possui um motor que o move e cada motor também se move e também possui um outro motor que o move e se move também. Entendeu? E assim seria todo mundo se movendo, com a finalidade única de chegar o dia em que se poderia ficar parado. E qual é o único motor imóvel de Aristóteles?!?! Deus!
Fala sério. Se há movimento, Deus, pra mim, deve ser o maior movente, deve possuir a maior mobilidade, o maior dinamismo do universo, e as outras idéias, menores que Deus e maiores que toda matéria, também devem possuir uma dinâmica bem avançada, bem mais veloz que nossa simples matéria. Daí, muito mais que buscar o repouso deve-se buscar mover-se sempre e sempre mais.

Acho que a epistemologia e a filosofia da ciência de Karl Popper e Thomas Kuhn já possuem bem essa noção de dinamismo e mobilidade. Assim como a antropologia de Claude Lévi-Strauss. Que não se contentam nem acreditam na explicação única, definitiva e linear em qualquer área do conhecimento.

4. Meu projeto científico mais ambicioso é aplicar a obra-prima de Lévi-Strauss, a saber, o livro: "O Cru e o Cozido" onde ele explica a importância da alimentação para as sociedades históricas, não só como fonte de energia química, mas como fenômeno social (comensalidades) e apelo estético, no que os alimentos importam aos nossos sentidos, a saber, não só o paladar, mas todos eles. Um fato de interação social que envolva tanta estética quanto a comida no sentido denotativo, só existe na própria comida, agora no sentido conotativo. Mas enfim, meu projeto filosófico-artístico-mitológico com ênfase na psicanálise e tópicos de teoria quântica, é, meu projeto, finalmente, aplicar a teoria de: "O Cru e o Cozido" na problemática dos tomates universais.

Ah! também é importante a idéia dos antônimos, dos contrastes. Certo Errado. Mal Bom. Destro Sinistro. Cru Cozido. E a dialética que resulta disso. E da dialética que resulta da anti-dialética, por isso adoro a dialética porque ela se confirma no seu contrário. Se reforça no seu antônimo.

5. Um colega meu de classe fez a monografia dele sobre o tema da reciclagem, foi uma sugestão bem sugestiva mesmo do professor, mais ou menos do tipo, se quiser que eu te oriente vai ter que escrever sobre isso. E estou fazendo uma matéria com esse professor nesse período, que é: "Economia de Empresas 1", o conteúdo é contabilidade pura. E o cara dá seu jeito de falar sobre reciclagem. É um bom sujeito, bom professor até, que já no primeiro dia de aula nos deu tal definição: "Uma pergunta, por definição, não pode ser errada." Pense nisso. Sócrates poderia ter dito isso. Mas o assunto é reciclagem. Repara bem no prefixo e no semantema: re-ciclo. O que foi luxo, virou lixo no ciclo anterior, voltará a luxo e depois lixo no reciclo. Mais ou menos como nos disse o filme Fight Club, com o adendo, aqui, de que a intenção é que vale e vale muito. A reciclagem deve ser consciente. E está inserida em todos os campos, nos mais variados aspectos. Como por exemplo as mitologias antigas, que foram luxo na antiguidade, viraram lixo na escolástica medieval, e tornaram a luxo nos modernos classicismo, neo-classicismo e neo-moderno modernismo.

Portanto, movimente-se, circule-se, recircule-se.

29/08/2007

Aestesis

A Escola de Frankfurt foi um famoso núcleo para estudos sociais que vigorou em meados do século passado e teve componentes ilustres como Adorno, Benjamim e Horkheimer. E tais componentes fizeram estudos muito proveitosos sobre arte e indústria cultural. E essa tal da indústria cultural é a responsável pelo esvaziamento de certos conceitos artísticos e filosóficos e pelo deturpamento de outros tantos.

Prova disso é o conceito de materialismo. Essa palavra hoje em dia é facilmente atachada às pessoas que dão mais valor a um Big-Mac com Coca-Cola e um tênis Nike do que do que aos problemas sociais. Em sumo, o alto exemplo do capitalista selvagem e egoísta. Nada mais falso. Prova disso é que Karl Marx, teorizador do Socialismo e do Comunismo, crítico ferrenho das engendragens homicidas e até, como ele mesmo disse, suicidas do Capitalismo e pensador extremamente atento às reivindicações sociais, era um materialista. Materialista a ponto de concordar com Feuerbach ao dizer que Hegel, ao imaginar sua teoria idealista, devia estar plantando bananeiras.

Outro conceito que tem sofrido demais nos últimos tempos e que é justamente um dos conceitos mais importantes de todos os tempos é o conceito que vem com a palavra estética.

Hoje se quer que a estética seja a preocupação com as aplicações de botox, o consumo de tênis lindos e caríssimos que o tal jogador estava vestindo no comercial do intervalo do Monday Night Football. Os que se preocupam com a estética são aqueles que farão plásticas cirúrgicas como as lipoaspirações depois de terem comido toneladas de Big-Mac´s, e depois pagarão caro, e de bom grado, para consumir seus dejetos reciclados como artigos de luxo, como nos ensinou Tyler Durden. Nada mais falso.

Estética tem origem na palavra grega "aistesis" que significa sentido, a grosso modo. E a estética cuida do que importa aos sentidos, do que os fere e os agrada. A teoria estética se ocupa dos materiais que provocam nossas percepções através dos nossos sentidos. Não há nada mais saudável. E Alberto Caeiro está de acordo.

Se hoje se tem uma visão muito deturpada do que seja a estética materialista, isso é menos culpa das objetos artísticos do que do marketing da indústria capitalista. E uma coisa nada tem a ver com a outra. E não sou eu quem está dizendo!

28/08/2007

bandeira gullar

esse poema do Gullar já foi citado aqui, e alinhado a um poema do Bandeira. Recito o mesmo poema do Gullar e o alinho, novamente, a um do Bandeira, mas o Bandeira que vai aqui é outro. Fácil de se entender o motivo.

ps: não serão citados Xuxa Meneguel e Renato Aragão no Criança Esperança.

Poema brasileiro

No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade

antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade


O BICHO

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

07/08/2007

é mesmo

sobre os conflitos entre favelados fardados e desfardados das duas últimas décadas cariocas, Nicolás Guillén, poeta cubano morrido há quase vinte anos.


No sé por qué piensas tú,
soldado, que te odio yo,
si somos la misma cosa
yo,
tú.

Tú eres pobre, lo soy yo;
soy de abajo, lo eres tú;
¿de dónde has sacado tú,
soldado, que te odio yo?

Me duele que a veces tú
te olvides de quién soy yo;
caramba, si yo soy tú,
lo mismo que tú eres yo.

Pero no por eso yo
he de malquererte, tú;
si somos la misma cosa,
yo,
tú,
no sé por qué piensas tú,
soldado, que te odio yo.

Ya nos veremos yo y tú,
juntos en la misma calle,
hombro con hombro, tú y yo,
sin odios ni yo ni tú,
pero sabiendo tú y yo,
a dónde vamos yo y tú Y¡
no sé por qué piensas tú,
soldado, que te odio yo!

28/07/2007

Creonte, Manel, e a realeza

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.


O mote deste poema é a fuga, quer-se é ir-se embora nesse poema. Ir-se, nesse poema, para um lugar onde se é amigo do rei, onde se escolhe a mulher e a cama em que deitarão. Vai-se embora para Pasárgada porque aqui não se é feliz, e lá se será. Lá se tem a nora que aqui inexistente, e se se tem a nora, tem-se a mulher, tem-se a cama que se escolher. Pois se é amigo do rei, e parente distante da rainha. Parente distante, com quem não se briga, como um amigo.

Lá, não há tuberculose. E por isso, faz-se ginástica, anda-se de bicicleta, monta-se em burro brabo, sobe-se em pau de arara, nada-se no rio e só depois de tanto esforço é que se cansa, não se vive cansado como aqui. Mas lá, há a infância daqui, as histórias contadas aqui, que nos fazem querer ir pra lá, e levar tais lembranças daqui.

Pasárgada é um Império, uma civilização avançada, com anticoncepcionais extremamente eficientes, com comunicação extremamente eficiente, como entorpecentes e prostitutas com majestosa eficiência.

Mas que surpresa! Em Pasárgada também se entristece, também há noite em Pasárgada, e desejos de morte, talvez também haja tuberculose por lá, e talvez haja lá tudo daqui. Porque fugir é ir para outro lugar e nunca se consegue a liberdade. Mas o que será a liberdade? O que se importa é que se seja amigo do rei. Que se conquiste os privilégios. E que se viva triste mas privilegiado. Que se chore na jacuzzi, não na sarjeta. Isso é o que importa.

Agora pode-se perguntar. Por que ser amigo do rei, ao invés de se ser logo o rei de uma vez. Essa pergunta talvez possa te responder Creonte, contraparente do rei Édipo:

"acreditas que alguém prefira o trono, com seus encargos e perigos, a uma vida tranquila, se também desfruta poder indêntico? Por minha parte, ambiciono menos o título de rei do que o prestígio real; e como eu pensam todos quantos saibam limitar suas ambições. Hoje alcanço de ti tudo quanto desejo e nada tenho a temer. Se eu fosse o rei, muita coisa, certamente, faria contra a minha vontade. Como, pois, iria eu pretender realeza, em troca de um valimento que não me causa a menor preocupação? Não me julgo tão insensato que venha a cobiçar o que não seja, para mim, ao mesmo tempo honroso e proveitoso. Atualmente todos me saúdam, todos me acolhem com simpatia; os que algo pretendem de ti, procuram conseguir minha intersecção; para muitos é graças a meu patrocínio que tudo se resolve. Como, pois, deixar o que tenho para pleitear o trono? Tamanha perfídia seria também uma verdadeira tolice. Não me seduz esse projeto; e, se alguém se propusesse a tentá-lo, eu me oporia à sua realização."

Importam, portanto, que não se seja o rei, mas seu amigo ou contraparente; importa que se conquiste e mantenha-se os privilégios e que se mantenha longe as obrigações, assim se é triste melhor.

Foi o que me disseram Sófocles e Bandeira.

15/07/2007

xibuardiolã e a loucura

Andei pensando nos falsos cognatos, como a palavra "chair", por exemplo, que em inglês diz "cadeira" e em francês "carne". Mas há os cognatos que não são tão falsos assim, como a palavra "aimer" que em francês diz "amar, gostar, estimar" e a palavra "aim" que em inglês diz "almejar, intencionar, objetivar". Talvez possamos levar em conta um carácter mais romântico dos franceses e mais pragmático dos britânicos que trazem essa leve distinção de significados, que mesmo distintos, permanecem muito próximos. Vide os gregos com sua "philia" que diz "amar, gostar, estimar, almejar, intencionar, objetivar", p.ex.: "filosofia" que é amar, objetivar a sabedoria. Podemos admitir que os franceses, pelo menos nessa palavra, herdaram o carácter dionisíaco e os britânicos, como bons rivais e preservadores da dialética, herdaram o carácter apolíneo.

Outro falso cognato, mas nem tão falso, se faz entre as línguas portuguesa e francesa, com sua "folie" e nossa "folia"; para eles, loucura, para nós alegria. As festas, as músicas, os batuques, as danças, as cores, as alegorias; O Carnaval é loucura ou alegria?

"Vai passar
Nessa avenida um samba
popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram
sambas imortais
Que aqui sangraram pelos
nossos pés
Que aqui sambaram
nossos ancestrais

Num tempo
Página infeliz da nossa
história
Passagem desbotada na
memória
Das nossas novas
gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão
distraída
Sem perceber que era
subtraída
Em tenebrosas
transações

Seus filhos
Erravam cegos pelo
continente
Levavam pedras feito
penitentes
Erguendo estranhas
catedrais
E um dia, afinal
Tinham direito a uma
alegria fugaz
Uma ofegante epidemia
Que se chamava carnaval
O carnaval, o carnaval
(Vai passar)

Palmas pra ala dos
barões famintos
O bloco dos napoleões
retintos
E os pigmeus do bulevar
Meu Deus, vem olhar
Vem ver de perto uma
cidade a cantar
A evolução da liberdade
Até o dia clarear
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório
geral vai passar
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório
geral
Vai passar"

Que alegria é essa onde os paralelepípedos da Avenida Rio Branco em suas reminiscências vêem os sambas imortais passando e se arrepiam por isso, e por isso e pelo ancestrais que ali também passearam os paralelepípedos sagram, dói-se o asfalto durante o carnaval para que os pés dos passistas permanceçam intactos. Que loucura é essa?

Que doença é essa que vem por direito? Essa epidemia fugaz e ofegante que acomete penitentes carregadores de pedras, erguedores de igrejas medievais, torres babilônicas, pirâmides egípcias, que vêem ao longo do ano sua pátria ir subtraída em transações tenebrosas, e os tranforma em ricos barões sem vale para marmita, em imperadores napoleônicos com duas mãos de tinta.

Vai passar essa loucura? Vai passar essa alegria? Que alegria é essa? Que liberdade é essa que evolui durante a madrugada no embalo dos surdos, caixas e tamborins e que morre quando nasce o dia? Por que na madrugada saem os loucos às ruas e os sãos, atrás das grades, assistem pela televisão?

Como pode cantar e dançar, como pode sambar esse povo? Que fantasias são essas? Como é que o canto brota no meio da opressão? Como é que nasce a flor apesar do ódio, do enjôo, do tédio, da náusea, do asfalto, dos paralelepípedos sem memória, sem imaginação, sem loucura, sem alegria?

Iconoclastia

Santa Madeira

Clifton Collins Jr e Michael Peña são dois atores holywoodianos de fisionomia latina, e que, em Holywood, já se cansaram de fazer o papel de imigrantes ilegais (chicanos) no Império e integrantes de quadrilhas marginais (chicanos) nas áreas marginais dentro do Império.

Brad Pitt é um ator holywoodiano de feições caucasianas e que já cansou de rivalizar com Tom Cruise pelo trono de galã midiático do Império.

No filme Babel dos mexicanos (com "me" e "x") Alejandro González-Iñarritu (diretor) e Guilhermo Arriga (roteirista), Clifton Collins Jr e Michael Peña são dois policiais de fronteira norte-americanos, ou estadunidenses como preferem os reacionários, e Brad Pitt é um pai de família 40tão, acabado, grisalho, e cheio de rugas pela cara.

No filme Babel dos mexicanos, a única cena de volúpia que Brad protagoniza é quando tira a calcinha mijada! de Cate Blanchett é lhe tasca um beijo na boca enquanto ela está sentada numa bacia que lhe serve de pinico dentro de um barraco de estuque em pleno deserto do Marrocos.

E Iñarritu ganhou o Oscar, não me perguntem mais porque sou seu fã.

12/07/2007

ponto de vista

vigias vídeos vendas

Deus está vendo.
Você está sendo
filmado.

Você está vendo,
Deus está sendo
vendido.

conselho do dia (modo erudito):
espectador, expectore-se das expectativas espetaculares do espectro

conselho do dia (no popular):
acorda pra cuspir!

Let´s call the whole thing off

joão e os pés-des-tomates (featuring: sir isaque nilton)

João um mora num país onde não existem tomates, só existem maçãs; e as maçãs se chamam tomates. E foi à sombra de um tomateiro que um tomate lhe caiu à cabeça e lhe mostrou porque o sol não é um deus e porque a terra gira em torno dele. O objeto sobre quem age o tomate do segundo período é sir isaque nilton, conterrâneo de João um.

João dois mora num país onde árvore chama-se chão e chão chama-se árvore, e aipim chama-se maçã e maçã chama-se aipim.

João dois escreveu um texto falando como as maçãs brotam nas árvores. Passou no vestibular.

João um escreveu um texto falando sobre os tomates nas árvores gigantes da floresta amazônica e da mata atlântica. Foi reprovado.

Hoje em dia:

João dois é biólogo.

João um trabalha na feira.

Ao som de Louis & Ella:

"I said tomato and you say aple"

notícia e poesia

Ambos modernos. Ambos do norte!

Um explora a poesia que há nos fatos não poéticos, ainda que um suicídio (fato densamente poético e filosófico) é um suicídio de um anônimo, ainda que apresentados nome, profissão e residência, um anônimo, pois é um João qualquer, com um sobrenome impropriamente derivado de adjetivo a substantivo próprio, um carregador qualquer de qualquer feira, em mais um barraco, em mais uma Babilônia, sem qualquer número. Ele chega, bebe, canta, dança, atira-se e morre-se; chegar é poético, beber, cantar, dançar, atirar-se, morrer-se são poéticos, e são notícias de jornais. Explora-se a poesia dos diários, dos cotidianos, ainda que trágico, anônimo, mesmo que nomeado. Sem lira, em terceira pessoa. A poesia entocada fora do eu-lírico, mas ainda poética.

Outro também explora a notícia, no limiar do limbo, onde é anti-ética é anti-estética. A poesia fora de si, anti-poética, onde o poema é subversivo, sujo. Pois da sujeira nasce e para subvertê-la. E como um martelo.


Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da
Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

(Manuel Bandeira)


Poema brasileiro

No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade

antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade

(Ferreira Gullar)

10/07/2007

joaquins e a saudade

Recebi hoje um e-mail de uma amiga. Continha duas cartas que dois amigos trocaram em tempos remotos. Eram homônimos. Abolicionistas e Republicanos. Um carioca favelado, outro pernambucano bem nascido. Muito amigos. Dois Joaquins. Um Nabuco, outro Maria Machado de Assis. As cartas falavam de saudades, já que o Bruxo ficara viúvo, solitário em sua morada no Cosme Velho. São lindamente simples. Abaixo o soneto que o viúvo escreveu à sua amada, antes de morrer, literalmente e literariamente, de saudades; justo ele, dos maiores realistas, tão romântico.


À CAROLINA

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

(Machado de Assis)

07/07/2007

xibuardiolã e a saudade

Eu tenho saudades de muitos lugares onde não estive e de pessoas que não me conheceram. Tenho saudades de Budapeste e Chico Buarque, por exemplo. E cito Chico porque é a literatura que me faz ter tantas saudades, e é na música de Chico Buarque de Holanda que se encontra a gênese da minha paixão por ela.

Eu tinha 18 anos de idade, morava em Brasília e, cansado do que me dava a mídia de massa, fui xeretar os discos de minha mãe. E encontrei uma coletânea do Chico e nessa coletânea a música que transcrevo abaixo. E, mais abaixo, tento descrever os motivos dessa música ter sido o começo e ter me acompanhado desde então.

Pedaço de Mim

Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Leva os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus


A linguagem opera por conceitos; e conceitos são todos abstratos: A palavra tomate não é um tomate, mas traz o conceito do que sejam os tomates em comum. (Agora, pode-se pensar: se até os substantivos concretos se dão por abstração, o que dizer então dos abstratos como amor e saudade?)

A linguagem surge, primordialmente, para sugerir, para representar o ausente; como memória e imaginação, para se referir ao que é de outros tempos e lugares, ao que não se encontra, no momento, nos limites estreitos dos sentidos, por que foi daí extraído, mas que pode se dar no campo mais largo do pensamento, do conceito, da abstração, pois aí é mais difícil a extração.

Toda palavra é saudade por se referir ao que não está nela. E, por isso, a linguagem nasce da saudade, concretamente; e a ela retorna a todo instante como conceito. Saudade é abstrato. O abstrato que é conceito do extrato.Tem-se saudade do que foi arrancado. O pedaço de mim, de ti, de alguém, que foi arrancado e que faz falta. Ter saudade é sentir doer o dente que foi extraído, é ver latejar o membro que foi amputado; a fisgada no músculo que já foi extirpado.

Saudade é um conceito abstrato do que é extrato mas se quer restituído, e por isso pior que o esquecimento. O que é presente não faz falta e só não é esquecido por estar presente. Também não se sente falta do que se quer ausente e está ausente, porque esse é como o inexistente, e aí se dá o esquecimento, muito confortável, conveniente, não se sente falta do dente do siso. A saudade não! A saudade é a fisgada no membro perdido e que não se quer perdido, é a vontade de extrair da ausência, de dar o troco, trazendo de volta à presença.

Saudade é abstrato e por vezes um abstrato tão forte que se faz quase concreto: uma sombra que quase se torna a coisa, como um barco que se vê vindo do horizonte, mas que não adere ao porto, e como um vulto descreve uma parábola, e volta ao horizonte, inacessível. Sente-se o cheiro, ouve-se a voz, mas não se tem a presença.

Saudade, em sua relação com amor é bem discreta, quanto maior um, maior o outro, já a relação de ambos com o tempo é mais delicada, pois se o tempo pode dissolver os dois primeiros, esses dois também tem a capacidade de dissolvê-lo. Isso me lembra o poeta Geraldo Carneiro, quando diz: "O tempo desfaz a noção do amor. O amor desfaz a noção do tempo". De volta às obviedades matemáticas, a noção mais forte deve prevalecer.

Saudade só há na partida, por isso o próprio Chico diz, em outra música, que "tem mais samba no porto que na vela"; o que nos remete novamente à metáfora da segunda estrofe. Mas é na terceira estrofe que ele contrói uma das metáforas mais belas que já vi, e dá uma definição majestosa do que seja o parto. Justamente admitindo que os partos são dois, opostos e complementares.

O primeiro parto é o de vir, é o parto da chegada, é o parto que vem de parir. Parto que provoca uma dor intensa, mas uma dor que traz uma nova presença. O outro parto, é o parto do ir, é o parto que vêm de partida, que também provoca uma dor imensa, mas da ausência. Ter saudades é como esperar o filho que já partiu, como se fosse possível pari-lo novamente.

Ter saudade é ter dentro de si a rima mais banal de todo nosso idioma, pois, é ter dentro de si, simultaneamente, amor e dor. E é sobre essa tríade piegas de amor, dor e saudade que surge a linguagem vasta, cultíssima, dos maiores poetas e filósofos que, das maneiras mais distintas, apenas querem atingir o que lhes é exterior e inacessível. Querem parir, pela linguagem, o que pela linguagem é morto e só reside fora dela.