02/11/2010

Catar feijão

1.

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.

(João Cabral de Melo Neto)


a arte não é papa. como qualquer outro grande discurso, seja ele filosófico, religioso, científico também não deve ser.

arte não é sopa rala que se toma sem que seu estômago nem perceba.

perante a grande arte deve ser o espectador um ruminante:


Vai o animal no campo; ele é o campo como o capim, que é o campo
se dando para que haja sempre boi e campo; que campo e boi é o boi
andar no campo e comer do sempre novo chão. Vai o boi, árvore que
muge, retalho da paisagem em caminho. Deita-se o boi, e rumina, e
olha a erva a crescer em redor de seu corpo, para o seu corpo, que
cresce para a erva. Levanta-se o boi, é o campo que se ergue em suas
patas para andar sobre o seu dorso. E cada fato é já a fabricação de
flores que se erguerão do pó dos ossos que a chuva lavará,
quando for
tempo.

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