07/07/2007

xibuardiolã e a saudade

Eu tenho saudades de muitos lugares onde não estive e de pessoas que não me conheceram. Tenho saudades de Budapeste e Chico Buarque, por exemplo. E cito Chico porque é a literatura que me faz ter tantas saudades, e é na música de Chico Buarque de Holanda que se encontra a gênese da minha paixão por ela.

Eu tinha 18 anos de idade, morava em Brasília e, cansado do que me dava a mídia de massa, fui xeretar os discos de minha mãe. E encontrei uma coletânea do Chico e nessa coletânea a música que transcrevo abaixo. E, mais abaixo, tento descrever os motivos dessa música ter sido o começo e ter me acompanhado desde então.

Pedaço de Mim

Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Leva os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus


A linguagem opera por conceitos; e conceitos são todos abstratos: A palavra tomate não é um tomate, mas traz o conceito do que sejam os tomates em comum. (Agora, pode-se pensar: se até os substantivos concretos se dão por abstração, o que dizer então dos abstratos como amor e saudade?)

A linguagem surge, primordialmente, para sugerir, para representar o ausente; como memória e imaginação, para se referir ao que é de outros tempos e lugares, ao que não se encontra, no momento, nos limites estreitos dos sentidos, por que foi daí extraído, mas que pode se dar no campo mais largo do pensamento, do conceito, da abstração, pois aí é mais difícil a extração.

Toda palavra é saudade por se referir ao que não está nela. E, por isso, a linguagem nasce da saudade, concretamente; e a ela retorna a todo instante como conceito. Saudade é abstrato. O abstrato que é conceito do extrato.Tem-se saudade do que foi arrancado. O pedaço de mim, de ti, de alguém, que foi arrancado e que faz falta. Ter saudade é sentir doer o dente que foi extraído, é ver latejar o membro que foi amputado; a fisgada no músculo que já foi extirpado.

Saudade é um conceito abstrato do que é extrato mas se quer restituído, e por isso pior que o esquecimento. O que é presente não faz falta e só não é esquecido por estar presente. Também não se sente falta do que se quer ausente e está ausente, porque esse é como o inexistente, e aí se dá o esquecimento, muito confortável, conveniente, não se sente falta do dente do siso. A saudade não! A saudade é a fisgada no membro perdido e que não se quer perdido, é a vontade de extrair da ausência, de dar o troco, trazendo de volta à presença.

Saudade é abstrato e por vezes um abstrato tão forte que se faz quase concreto: uma sombra que quase se torna a coisa, como um barco que se vê vindo do horizonte, mas que não adere ao porto, e como um vulto descreve uma parábola, e volta ao horizonte, inacessível. Sente-se o cheiro, ouve-se a voz, mas não se tem a presença.

Saudade, em sua relação com amor é bem discreta, quanto maior um, maior o outro, já a relação de ambos com o tempo é mais delicada, pois se o tempo pode dissolver os dois primeiros, esses dois também tem a capacidade de dissolvê-lo. Isso me lembra o poeta Geraldo Carneiro, quando diz: "O tempo desfaz a noção do amor. O amor desfaz a noção do tempo". De volta às obviedades matemáticas, a noção mais forte deve prevalecer.

Saudade só há na partida, por isso o próprio Chico diz, em outra música, que "tem mais samba no porto que na vela"; o que nos remete novamente à metáfora da segunda estrofe. Mas é na terceira estrofe que ele contrói uma das metáforas mais belas que já vi, e dá uma definição majestosa do que seja o parto. Justamente admitindo que os partos são dois, opostos e complementares.

O primeiro parto é o de vir, é o parto da chegada, é o parto que vem de parir. Parto que provoca uma dor intensa, mas uma dor que traz uma nova presença. O outro parto, é o parto do ir, é o parto que vêm de partida, que também provoca uma dor imensa, mas da ausência. Ter saudades é como esperar o filho que já partiu, como se fosse possível pari-lo novamente.

Ter saudade é ter dentro de si a rima mais banal de todo nosso idioma, pois, é ter dentro de si, simultaneamente, amor e dor. E é sobre essa tríade piegas de amor, dor e saudade que surge a linguagem vasta, cultíssima, dos maiores poetas e filósofos que, das maneiras mais distintas, apenas querem atingir o que lhes é exterior e inacessível. Querem parir, pela linguagem, o que pela linguagem é morto e só reside fora dela.

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