19/09/2007

Errata

No texto sobre os espelhos e a literatura fantástica, não citei "O Menino Através do Espelho", de Fernando Sabino, porque comecei a ler, mas não tive ânimo para terminar.

E não citei "Alice Através do Espelho" de Lewis Caroll porque nunca cheguei a ler.

Mas há uma obra que li e reli e que não podia ter ficado de fora. Tanto no texto sobre os espelhos como no texto sobre os relógios.

Mas, graças a Carol, posso me livrar do meu erro. Trata-se de um conto de Machado de Assis: "O Espelho (Esboço de uma nova teoria sobre a alma humana)".

O conto fala de um cidadão que alcançou um alto posto social, e, de repente se vê só, sem as bajulações constantes que o lembram constantemente do privilégio de sua posição. E, a partir daí, o tempo, antes tão agradável, passa a ser massacrante. E sua imagem no espelho, começa a desfocar-se (é notável essa passagem fantástica na literatura realista de Machado). E sua reflexão no espelho só se reestabelece depois que o personagem, solitário, veste sua farda em frente ao espelho, e, narcisamente, se admira e se relembra de seu status social, ainda que distante de qualquer convívio.

Algumas passagens do texto:

"Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência(...) quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo."

"Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro pra fora, outra que olha de fora pra dentro. (...) As duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja."

- Ou um tomate, digo eu!

"um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas."

"Minha solidão tomou proporções enormes. (...) As horas batiam século a século, no velho relógio da sala, cuja pêndula. tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! Confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: Never, for ever! - For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada."

"Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac."

"era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária(...) deu-me na veneta olhar o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não me permite negar que o espelho reproduziu-lhe textualmente, corri os mesmos contornos e feições, assim devia ter sido. Mas tal não foi minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava, receei ficar mais tempo e enlouquecer.(...) E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado.(...). De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos."

"Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento...Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e...o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente(...) ei-la recolhida no espelho."

"olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado, Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando."

ps: L'eternite est une pendule, dont le balancier dit et redit sans cesse ces deux mots seulement dans le silence des tombeaux: "Toujours! jamais! Jamais! toujours!"
(Jacques Bridaine)

ficam como sugestões o poema de Henry Longfellow, citado por Machado: "The Old Clock on the Stairs"
e o poema "The Raven" de Edgar Allan Poe, e a tradução de Fernando Pessoa: "O Corvo".

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