14/09/2007

Tempo

Refletidos os espelhos, apontaremos os relógios, que também são símbolos de maior importância.

Durante toda a antiguidade até a idade média, era considerada vilania a cobrança de juros. Se argumentava que não se pode vender o que não se tem, nem comprar o que não se pode ter. E cobrar juros é negociar o tempo, e se o tempo pertence a Deus (Chronos para os pagãos) nenhum homem pode comercializá-lo.

Porém, com o advento do capitalismo, logo lá no comecinho, com o início da derrocada dos grandes sistemas europeus de feudos, e o ressurgimento e solidificação de cidades-Estado nas vias de importantes rotas marítimas e comerciais (mercantilismo), e com a existência de um povo discriminado das mais importantes atividades econômicas (judeus), a prática de empréstimos a juros começou a amadurecer e finalmente chegou pra ficar. Para tanto, ver "O Mercador de Veneza" de Willian Milk Shakespeare, o livro. E ver também a adaptação em filme. com Robert De Niro, como o banqueiro Shylock.

Então, se o tempo passou a ter custo, a ter preço, se as badaladas dos sinos e o cucar dos cucos entraram na lógica das curvas cruzadas de oferta e demanda, é bem evidente que o girar dos ponteiros ficou bem mais endurecido. Pouco importa se o tempo é medida relativa, que, junto com o espaço, se contrai e se dilata. Muito importa quanto vale o tempo, qual a taxa de juros aplicada ao montante, qual o prêmio pelo risco, qual o spread entre as taxas de juros interna e externa.

Então, os dias que são muitos, e eram de muitos deuses, passaram a ser de um só deus: Mamôn. Inclusive o sabath dos judeus, o dia de Saturno (saturday) dos anglo-saxões, e o nosso sábado, que hoje em dia é domingo, que era dia do Sol (sunday).

Alguns exemplos recentes dessa relação com o tempo são as cadeias fast-food. Se o pizzaiolo e o motoqueiro demorarem mais de meia hora pra entregar a sua pizza você como a pizza de graça, e é muito claro que eu não quero te dar minha pizza de graça, eu quero teu dinheiro, então chicote no moto-boy e no cozinheiro.

As fábricas modernas orientais, que surgiram no último quarto do século passado, pós-crise do petróleo e crise das linhas de montagem fordistas, são chamadas just-in-time, nome bastante sugestivo. Os insumos que o produtor necessita precisam estar disponíveis no exato momento em que forem requeridos, nem antes nem depois. E o cuco cuca.

Nessas fábricas, sobretudo as de microeletrônica e de automóveis, são notórias suas práticas de flexibilização, dinamismo e mobilidade das relações de produção. Parmênides, Zenão, Platão e Aristóteles se contorcem querendo sair do túmulo.

E acho que as artes, principalmente o cinema e a literatura (aliados), demonstraram os sintomas dessa ditadura dos relógios, e vou citar os exemplos.

No Labirinto do Fauno(que é passagem importante nas mitologias gregas), o vilão possui um relógio de prata que foi de seu pai e que permitiu ao filho (o ditador) saber a exata hora da morte de seu progenitor, e quando o ditador morre, pede para que dêem seu relógio a seu filho recém-nascido para que ele tome ciência exata da hora em que o pai faleceu.

No Lavoura Arcaica, filme baseado no livro do brasileiro-argelino Raduan Nassar, a figura do avô é uma figura sinistra, parva, turva, opaca, e a única coisa que reflete a luz em tal figura é um relógio de bolso dourado.

No Little Children, outra adaptação de livro, que ganhou Oscar, a presença dos relógios são massacrantes, a ponto de uma das antagonistas controlar o tempo de maneira absurda. Chama as crianças na exata hora para o lanche, e para solucionar os problemas sexuais com o marido, faz sexo em horas pré-estabelecidas. Mas a principal noção de tempo explorada no filme é o tempo se dilata de tal maneira que os personagens, todos em idade adulta, permanecem num estado infantil infindável.

No Clube da Luta, mais uma adaptação de livro (Chuck Palaniuck) o protagonista trabalha numa companhia de seguros, portanto negocia o tempo e pior, negocia o tempo sobre conceitos calamitosos, como desastres automobilísticos; a ponto de ter devaneios com quedas de aviões, enquanto ainda está nos aviões! E tal personagem começa a perder a noção usual de tempo, o que o leva ao máximo de explodir o próprio apartamento. Ele começa a mostrar os sintomas de perda de noção temporal quando começa a guiar seu calendário pela cor da gravata que o chefe usa. Se a gravata é azul ou amarela, ele deduz que deve ser terça ou sexta-feira.

Nos filmes De Volta Para o Futuro e Efeito Borboleta são usadas algumas teorias famosas das ciências físicas e matemáticas para dar mote ao enredo. Como a noção de elasticidade do tempo de Einstein e da Teoria do Caos. Entretanto, nesses filmes as voltas e revoltas no tempo são sempre previamente anunciadas, para que o telespectador não se perca na história.

No filme Amnésia, o protagonista sofre de perdas de memória, e conserva suas reminiscências ao longo do próprio corpo, ao final de cada dia ele tatua todos os eventos em sua pele para que possa lembrar deles no dia seguinte. Aqui vale lembrar que o verbo para reminiscências, em inglês, é remember, isto é, remembrar, tornar membro novamente. Como se cada evento, cada fenômemo que nós presenciássemos ficasse gravado em nosso corpo. Como se as memórias fossem membros acoplados em nossos corpos além de nossos braços e nossas pernas. E que cada esquecimento fosse um desmembramento. E cada lembrança um remembranmento. Remember. E como o personagem se esquece o tempo todo dos eventos, o filme também se esquece, e assim, vem e vai, o tempo todo, no tempo, para buscar as respostas.

Outro filme que explora com maestria a relação de tempo é 21 Gramas, nele há uma descontrução do tempo através de uma narrativa não linear. Não se usa uma simbologia, como os relógios, para se referir ao tempo, mas se usa a própria estrutura de narrativa do roteiro. Onde se permanece o tempo todo no limite extremo entre a confusão total e a elucidação. Entre a redundância e a informação. Por não seguir uma cronologia convencional, cada cena, por mais pequena, pode trazer explicações absurdas sobre o que realmente se passa no enredo.

Para citar mais uma obra literária, no livro Budapeste, também se encontra esse artíficio de narrativa não linear que confunde o leitor sobre as conexões das imagens e a realidade dos eventos.

E por fim, nas artes plásticas, temos o modernismo surrealista de Salvador Dalí, e as imagens de seus relógios oníricos se dissolvendo no espaço-tempo.

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