14/09/2007

Reflexões

Médium. Mídia. Meio. Mediação.

São palavras que possuem a mesma raiz etimológica.

A internet, por exemplo, é o meio por onde se comunicam os blogueiros. Ela faz a mediação entre os que lêem e os que escrevem. Uma mídia com um grau de interatividade muito maior do que a televisão, onde cada leitor pode tornar-se instantaneamente um escritor, cada receptor é simultaneamente emissor. A internet é o médium pós-moderno.

Porém, a palavra: "médium" acabou por assumir um carácter exclusivamente místico, siginificando aquilo que faz a mediação entre mundos distintos e separados, como o mundo dos mortos e dos vivos e o mundo das idéias e das matérias. E essa mídia geralmente é olhada com desdém e tratada como exótica, no viés de outras visões "lógicas".

Há outra mídia muito importante ao longo da história e também vista com muito ridicularizar nos últimos tempos. Se trata dos "aedos", trovadores, poetas, que fazem a ligação entre esse mundo e outros mundos fantásticos.

Há semelhanças claras entre as mediações místicas e as fantásticas, mas, a meu ver, os mediadores do primeiro caso pregam a existência de um mundo fora desse mundo e mais, um mundo sobre esse mundo; um super-mundo, no topo de uma hierarquia. Daí porque me parece que Platão foi tão importante para Alan Kardec.

Agora, diferentemente dos médiuns religiosos, os médios artísticos fazem a ligação desse mundo com ele mesmo, o que eles alteram são as ordens. As fantasias são ordens distintas da mesma realidade que estamos acostumados a olhar pela ótica rotineira, enfadonha e simplória.

Bertrand Russell, em Introdução à Filosofia Matemática, demonstra que a ordem dos números naturais que começa em 1 e vai sempre acrescentando mais um até onde der, está longe de ser a única ordem pela qual os números podem ser arrumados, não é nem ao menos a ordem mais correta, é simplesmente a ordem mais simples. E nos acostumamos tanto a ela, desde a infância, que chegamos a achar que só existe essa. Ledo engano.

Aliás, Russell diz que nós nem ao menos ordenamos as coisas, ou os números, conforme o exemplo; ao contrário, todas as coisas já têm entre si todas as ordens a que são possíveis. O que compete a nós, observadores, é apenas atentar para elas. Para as coisas e suas ordens.

E eu acho que esses artistas de palavras fazem justamente isso, desvelam outras ordens. Ocultas não porque essencialmente ocultas, mas por nossa falta de visão em buscar novas ordens, que são igualmente aparentes, porém menos simples, menos "racionais", enfim muito doidas e fantásticas. Pura perda de tempo, talvez.

Acredito que os fantasistas agem como espelhos desse mundo, espelhos ativos que rearranjam as coisas, que fazem a ligação desse mundo com ele mesmo, refletem sobre ele, e acham novas conexões, e, por isso, são espelhos ativos, que apontam, indicam.

E assim chegamos a um símbolo muito importante na histórias das fantasias, das mitologias, que são justamente os espelhos.

Os espelhos já eram simbolizados antes mesmo de existir como um artefado de vidro e metal, quando ainda eram meras lâminas-d´água. Daí Narciso que, já nas mitologias antigas, usava os espelhos para metaforizar muito menos o galã que se auto-admira do que o dogmático que se prende e se perde absurdamente nas certezas de suas reflexões.

A metáfora dos espelhos também está presente em outras passagens famosas como nos contos de fadas "A Branca de Neve". Nos contos fantáticos modernos, Jorge Luís Borges, em "Ficções", diz ser possível construir um universo movido apenas por espelhos e enciclopédias; ainda na literatura temos o espelhamento em "Budapeste" de Chico Buarque, que, como disse Caetano, faz um jogo de espelhos, onde se perde a referência do objeto refletido e, portanto, cada reflexão passa a ser a apresentação do objeto real.

No cinema, temos "Fight Club", onde o protagonista olha o tempo todo pra si mesmo ao olhar para outros personagens como Tyler Durden e Marla Singer. Em "21 Grams", o espelhamento nos dá a noção de paralelismo e de dialética, quando os dois protagonistas ganham corações novos e sádios, um pela religião, outro pela ciência, para repor seus antigos corações enfermos. E depois da redenção, a queda; os novos corações limpos se sujam e envelhecem. E ascensão e queda também nos remetem aos espelhos, pois a via que desce; diante do espelho, sobe. Como nos diz Heráclito: "o caminho para cima e para baixo é um e o mesmo". No espelho, o sinistro se faz destro e o destro se faz sinistro.

Nas artes plásticas, temos as obras de René Magritte e Juan Velásquez que exploram a noção de espelhamento e reflexão e as possíveis confusões que daí podem surgir. Na introdução do livro "As Palavras e as Coisas" Michel Foucault faz um estudo de 20 páginas sobre um quadro de Velásquez (As Meninas) e mostra como o artista, usando o artifício do espelho, multiplica em vários o centro da obra, de maneira tal que não se percebe um centro principal e, a exemplo do Budapeste de Chico Buarque, o objeto que se apresenta se confunde com suas reflexões, e, assim, cada nova reflexão e como a apresentação de um novo objeto que se metaformoseia a cada instante.

Na filosofia, nos remetem as metáforas dos espelhos as noções dos antigos gregos de mimesis e reminiscências, que são algo como imitação e lembrança, respectivamente. Os espelhos passivos se contentam com a mera imaginação reprodutora (termo de Bachelard), ou lembrança rotineira (Bergson), que consiste em algo como uma memória mecânica que apenas reproduz os objetos que se lhe apresentam.

Mas como já foi dito, aqui se tratam de espelhos ativos, que possuem imaginação criadora (Bachelard), lembranças intencionais (Bergson), que lembrando e imaginando, imitam de uma forma diferente, criam o novo. Reparam, mostram e refletem o que estava eclipsado.

Acho que também se faz importante uma citação a revolução que Kant promoveu na epistemologia filosófica ao admitir a questão do sujeito como central, algo que, penso, já teve início em Descartes. Não se trata apenas da consciência que imagina, reflete, cria e reproduz imagens exteriores a si. Fala-se agora da consciência que se volta sobre si mesma, que se reflete, busca uma imagem própria de si para si. E assim temos um espelho de frente pro outro, e reflexões dentro de reflexões, infinitamente. E a indissociação entre objeto refletido e objeto refletor.

De volta ao cinema, no Filme "Adaptação" dos excelentes irmãos Kaufman, gêmeos diretores e roteiristas, o espelhamento é magistralmente utilizado para confundir, na obra, o que é "realidade" e o que é "ficção". O autor do filme e o próprio filme se confundem e fica muito difícil separar as coisas "racionalmente". "Mais Estranho que a Ficção" tentou fazer um plágio da idéia, acho que não deu muito certo.

Por fim, fica aqui a dica para que se veja uma obra-prima do cinema fantástico, dos irmãos Kaufman: "Quero ser John Malkovich". E fica o conselho para que reflitamos ativamente sobre as coisas e suas ordens, e busquemos o novo e o inusitado.

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