02/10/2007

Contradição?

Satélite

Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A Lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite.

Desmetaforizada,
Desmistificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro do loucos e dos enamorados.
Mas tão somente
Satélite.

Ha Lua deste fim de tarde,
Demissionária de atribuissões românticas,
Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
- Satélite.
(Manuel Bandeira)

Lua

A proa reta abre no oceano
Um tumulto de espumas pampas.
Delas nascer parece a esteira
Do luar sobre as águas mansas.

O mar jaz como um céu tombado.
Ora é o céu que é um mar, onde a lua,
A só, silente louca emerge
Das ondas-nuvens toda nua
(Manuel Bandeira)



No primeiro poema Bandeira parece assumir um discurso positivista em sua poesia, o que não deixa de ser curioso, pois o discurso positivista é anti-mitológico, por se recusar a ver a Lua como algo mais que um satétlite terrestre, como uma deusa por exemplo, e assim é também anti-poético. E nesse poema Bandeira assume uma linguagem anti-poética. Apenas para recuperá-la, no mesmo livro, cinco páginas depois. Referindo-se ao mesmo objeto, agora não mais recebendo um tratamento puramente científico, mas re-vestido de seu carácter poético. Onde, não ingenuamente, é utilizada novamente a noção de espelho ao ser o mar um reflexo do céu, o céu um reflexo do mar. O que é magistralmente posto no neologismo "ondas-nuvens".

Agora, pode-se perguntar: por que a negação de um discurso para reafirmá-lo logo depois? Alberto Caeiro bem atentou para o carácter contraditório dos poetas que ora olham para um lado, ora olham para o outro. E que são sempre iguais, sendo a cada instante diferentes. Mas o caso aqui nem parece chegar a tanto.

Sempre aprendi na escola e nos manuais de literatura que esse poema é um ícone do modernismo (não por acaso um dos mais citados e conhecidos do poeta) porque ele retrata fielmente uma visão de mundo deprimida, pessimista, um discurso poético invadido pela linguagem não-poética, numa espécie de arrebatamento da poesia pela linguagem positiva, analítica.

Hoje, me admito refutar esse argumento que me foi encucado depois de tanto tempo. Vejamos porquê: Repare, na primeira estrofe, no uso de palavras como: plúmbeo e cosmograficamente que são palavras bem à guisa do rigor científico. Repare, então na segunda estrofe, a tripla e seguida repetição do prefixo: "des" que significa justamente a negação. Agora o mais importante, repare nas duas últimas estrofes na inclusão das palavras: demissionária, show, mais-valia.

Pra mim, nesse poema, trata-se de uma ironia. Usando largamente conceitos marxistas, Bandeira conclui que num mundo onde demissão, que causa o exército industrial de reserva citado por Marx em sua obra, é uma palavra corrente, inclusive poética, num mundo onde a mais-valia(outro termo de Marx), que explora o trabalhador que ainda não foi demitido, também é prática corrente e palavra agradável. E que num mundo onde essas demissões e essa mais-valia agem em prol di maior lucro dos capitalistas que bem ao modo do amecican way of life acham que a vida é um show !

Nesse mundo sim faz todo o sentido a destituição da linguagem e do pensamento poéticos e mitológicos. Mas em outros mundo possíveis, com os quais ainda sonha o poeta (e bem nos disse a Nobel de física "a realidade é apenas uma das possilidades"), nesses outros mundos, nessas outras ordens de fantasia, ainda cabe a linguagem que o poeta emprega e confirma e no segundo poema.

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