02/10/2010

Devoramentos


Saturno devorando seus filhos - Francisco Goya

Informe
(Ceci n´est pas une pomme)

a pantera-negra é laranja
a pantera-negra não come laranjas
a pantera-negra vê a laranja
embaixo das antenas
a pantera negra ouve a laranja
na madeira
na madeira que não é do galho
na madeira que era da árvore
e agora é madeira e mámore
no móvel sem raiz
a laranja engole a negra
pantera
por trás do bigode
a pantera é negra e quadrada
como o pomo que a come


Já discorremos diversas vezes nesse blog sobre a importância fundamental da alimentação, seja como ato fisiológico e termodinâmico de reenergização e manutenção imediata da espécie, seja como ato semiótico de comensalidade e confraternização.

A respeito da abordagem fisiológica temos todas as considerações da nutrição e da bromatologia, bem como a explanação etnológica de Richard Wrangham que demonstra como o gênero Homo evolui fisiologicamente e semioticamente a partir da cozinha, ou seja, do ato de cozer os alimentos.

E também temos a abordagem semiótica de Levi-Strauss, que, analizando mitos ancestrais, explica como se identifica, numa linguagem binária, o alimento cru com o estado natural e o alimento cozido como o estado cultural: vide o mel, que se come cru e que é naturalmente produzido pelas abelhas e a fumaça que é produto do tabaco culturalmente cozido e que serve como agente midiático em relação ao mundo espiritual.

Mas sabemos também que comer é assimilar. A presa (a comida) se doa completamente e é interamente assimilada pelo predador (o comedor). Portando o ato de comer e ser comido é também um diálogo entre o opressor e o oprimido.

A banana comeu o macaco. Uma frase gramaticalmente perfeita, no que tange às esferas da fonologia, da morfologia e da sintaxe. Temos um sujeito que age sobre um objeto. Porém, do ponto de vista semântico e pragmático, uma frase absurdamente estranha. Tão estranha como uma laranja que engole uma pantera, ou um tubo de elétrons (Marcelo Taz) que assimila um cérebro, ao invés de por ele ser assimilado.

E é claro que um assunto tão primordial como os devoramentos não poderia ficar de fora dos discursos epistemológicos, sobretudo dos discursos primevos, das narrativas fantásticas das mitologias.

Temos o exemplo do deus Cronos(Saturno), que, por medo e pavor de que seus descendentes o sobrepujassem, devora seus filhos um a um. Numa bela ilustração do conflito de gerações que está em vigência em todas as épocas. Vale lembrar que o próprio Cronos havia castrado seu pai Urano com uma golpe de foice.

Zeus(Júpiter), porém, conseguiu escapar de seu trágico destino, não foi completamente assimilado por seu passado, sua memória, sua tradição, sua ancestralidade, em poucas palavras, não foi devorado por seu pai Cronos, e, assim, destronou-o e tornou-se, ele mesmo, governador do Olimpo, ao libertar seus irmãos.

Entretanto, agora, como devorador e não mais devorado, passava a temer não o passado por trás de si, mas o futuro a sua frente, e, como seu pai e seu avó, passou a temer que as gerações vindouras o assimilassem completamente, e, assim, como seu pai e seu avó, fazia da novidade uma presa, por pavor que se tornassem os pedradores dele mesmo. Assim como seu avô Urano e seu pai Saturno, Júpiter temeu tornar-se caduco.
E como seu ancenstrais, por quem não quis ser assimilado, foi devorado por suas aflições.

Sabendo Zeus que a deusa Métis(Prudência) gestava um filho dele em seu ventre, deglutiu-a de uma só vez, para que ela não pudesse parir. Porém, passado algum tempo, sentindo fortes dores de cabeça, Zeus perimitiu que Hefesto(Vulcano) abrisse,com um martelo, sua cabeça, de onde brotou Atena(Minerva) a deusa da sabedoria.

E, ainda na mitologia grega, temos a imagem da Esfínge, importada do Egito e que diz: "Decifra-me, ou te devoro". No que poderíamos traduzir por "Assimila-me, ou te assimilo." ou então: "Coma-me, ou te como eu."

E não se pode olvidar o Mito da Caverna do Minotauro, que devorava os que se perdiam em seu labirinto.

"os sonhos decorrem da indisgestão" (ditado popular citado em Interpretação do Sonhos - de Sigmund Freud)

Os discursos fantásticos, as narrativas mitólogicas são corriqueiramente relacionados com a ilusão, o estado onírico, ficcional e inconsciente. E se, hoje em dia, as neurociências cognitivas identificam o cérebro como nossa CPU fisiológica, em tempos passados esse centro de processamento já foi indicado pelo coração, o que dizem ser a razão da expresão saber de cor(ação), e podemos dizer que até os nossos dias ainda muito se diz ser o coração o centro das emoções, principalmente as emoções relacionadas aos relacionamentos afetivos, como amor, paixão, ciúme.

Mas ainda mais remotamente, se identificava o sistema digestivo, principalmente estômago e instestinos como o centro de processamento dos nossos instintos mais primitivos(Roberto Jefferson), como aquela ânsia ou aquela excitação que nos abrem o apetite ou nos embrulham o estômago.

Talvez por isso a razão de ser do provérbio supracitado. E como já dissemos, o discurso mitológico se dirige com muita frequência ao desconhecido, ao inconsciente. E esse desconhecido muitas vezes assume a forma de uma figura. Como as entranhas do bucho de uma fera, os corredores gélidos de um labirinto, a escura umidade de uma caverna, o profundo embrenhar-se em matas fechadas, ou o longínquo navegar em mares abertos. Esses lugares estão muito presentes nas narrativas fantásticas. Aliados à noção de devoramento.

Todo herói possui uma missão, e essa missão muitas das vezes passa por exilar-se em terra estrangeira, cumprir um objetivo e retornar ao lar. Foi assim com Ulisses, foi assim com Eneias, foi assim com Orfeu, foi assim com Teseu. Que adentraram labirintos, cruzaram mares, atravessaram planícies, mergulharam nas profundezas dos oceanos, sempre correndo o risco de ser completamente assimilados pelos Outros, para completar a tarefa e retornar à pátria.

Saindo da antiguidade, e chegando ao medievo, podemos citar alguns dos contos compilados pelos irmãos Grimm, sempre com referências a exílios, retornos e devoramentos.

Podemos citar as lendas de Chapeuzinho Vermelho, que se embrenha na mata para levar um pote de doces em visita à avó, e corre o risco de ser devorada por um lobo, lobo que ja havia devorado sua avó.

João e Maria que também se embrenham na mata(abandonados por seus pais, que não mais tem condições de alimentá-los) para cumprir a mmissão de encontrar uma casa todinha feita de doces, e que, para poder regressar ao lar, vão espalhando um rastro de migalhas de pão que vão devoradas pelos pombos, e, assim, se perdem no desconhecido da floresta, e, por isso, correm o risco de ser devorados por uma velha bruxa, que os engorda até o ponto do abate. Espertos, porém, João e Maria prendem a bruxa dentro de seu próprio forno(o feitico contra o feiticeiro) e fogem levando providências suficientes para o resto de suas existências.

João Pé de Feijão que troca uma vaca por cinco feijões mágicos que fecundam o chão e cujos brotos gigantes o levam a um reino celeste de gigantes devoradores de humanos.

Branca de Neve que embrenha-se pela mata para evitar ser assassinada por sua madrasta, e que come uma maça envenenada oferecida pela própria madrasta, que estava em disfarce, porque esta tem a intenção de comer o coração daquela, e, assim, tornar-se bela como ela.

Rapunzel que foi trancafiada no alto de uma torre porque seu pai, antes que ela fosse nascida, roubou frutos do pomar de uma bruxa para que sua mãe os comesse.

E, ainda na idade média, temos as histórias, de Gargantua e seu filho Pantagruel, de autoria de Rabelais, que consistem em dois motológicos comedores, gulosos fasntásticos.

Já em nossa época, relembro com muito gosto, do filme O Labirinto do Fauno, direção do mexicano Guillermo del Toro, que narra fantasticamente o fato histórico da ditadura de franco na Espanha e da Guerra Civil que dela se origina. E que usa um sapo glutão que vive dentro do tronco de uma árvore, e que suga toda a energia desse vegetal com sua gulodice, como figura para o ditador e sua corja que usurpam toda a riqueza da nação. E a heroína usa a própria natureza devoradora do vilão para dar-lhe de comer o veneno que, para a árvore, funciona como antídoto. É a revolução social que derruba o regime nefasto e reestabelece a robustez da pátria, tudo isso dito pelas figuras e motivos dos devoramentos.

E ainda no mesmo filme, Ofélia, a menina heroína, adentra os cômodos de um monstro que, a exemplo da bruxa da floresta de João e Maria, oferece um vasto banquete às crianças que a visitam para depois devorá-las. O que nos diz que tudo o que é assimilado é, antes disso, seduzido.

Come-se o peixe que morde a isca. Para assimilar o(a) parceiro(a) é preciso seduzí-lo(a). Mestre e discípulo precisam seduzir reciprocamente para que possa assimilar-se um ao outro. Os seus espelho te devoram e te assimilam.

E saindo da época contemporânea e voltando a antiguidade judaico-cristã. Temos o famoso mito de Adão e Eva, que comem o fruto do conhecimento, em mais uma demonstração de que comer assim como conhecer é assimilar, e que por isso, são expulsos do paraíso.

Temos o mito de Jonas que é devorado por uma Baleia por ter se recusado a cumprir uma ordem divina e que, devorado por ela, vive em seu ventre por alguns dias, no fundo do aceano, até ser vomitado. E, em relaçao a esse mito bíblico, gostaria de mostrar um poema de Márcio-André:

Baleia

aqui do estômago desta baleia
a cidade é um cardume cintilante
e
a estátua de drummond tem as costas ao oceano –
[as estátuas são para os homens não para o mar]

cultivar um peixe por dentro
para um dia comê-lo

esperando uma mulher surgir da precisão da ossada

um dia somos felizes em nosso jardim cetáceo
e ela caminha suavemente ao meu lado
sonhando o domingo mais triste do mundo no subúrbio do
lado de lá

um dia estamos na meia idade e bebemos porque não há opção

e o guindaste no cais estará esmagado como um inseto morto
diante das mil falhas na goela das águas

o mar está na foto dos homens não no sonho das estátuas


Como não poderia deixar de ser, os mitos de devoramentos estão repletos de exemplos de canibalismo humano (antropofagia), que foram citados acima.

Nessas culturas canibais, acredita-se que, ao devorar o outro, detém-se sua qualidades; ao comê-lo, assimila-se suas virtudes. E por mais retrógrada que seja considerada a prática do canibalismo, não posso deixar de fazer menção honrosa ao mito cristão que vai representado pelo rito da Santa Ceia. Onde os cristãos comem a carne (figurada pelo pão) e bebem o sangue (figurado pelo vinho - suco de uva) de seu herói Jesus Cristo, na ânsia, na esperança, na vontade e no desejo de vir a ser como ele, na fome e no apetite de assimilá-lo cada vez mais.

E por fim, faço as citações ao filme The Silence of the Lambs, e ao canibalismo de seu vilão Hannibal.

E ao movimento Antropofágico da literatura brasileira, que tinha por modelo o devoramento de toda a tradição ocidental estrangeira, e a consequente regurgitação de uma literatura absolutamente e originalmente brasileira.

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